quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Acertei numa! Tavares já tem estrela Michelin

Aconteceu uma coisa muito positiva a Lisboa. O Tavares e o chefe José Avillez já têm uma estrela Michelin. Mais do que merecida. A outra nova estrela vai para o Vila Vita Parc, no Algarve. Confesso que fico surpreendido por um lado, mas ao mesmo tempo concordo. Fiz lá há menos de 2 meses uma refeição fabulosa e depois fiquei pasmado com a exiguidade da cozinha e dos malabarismos que ali têm de se fazer para cumprir a missão do jantar para toda a gente.

Estrelas Michelin 2010

Enquanto se mastiga um jantar em Madrid, como se não se desenvolvesse úlcera gástrica ao mesmo tempo em quem leva o assunto Michelin a sério, aqui vão os meus artigos de fé para 2010.


Segunda Estrela

Amadeus, em Almancil - É o campeão da consistência e coerência, juntamente com uma alma nova que elevou o conceito de refeição em Poertugal a um patamar inédito. Sigi, ou Siegfried Danler-Heinemann

Fortaleza do Guincho - Vincent Farges trouxe para este extraordinário restaurante o que Westermann não tinha conseguido trazer: pica. Sabores intensos e directos, matéria-prima a raiar a sublimidade, e elenco de pratos de antologia.


Primeira Estrela

Tavares, em Lisboa - Tem de ser. Aqui está um exemplo de estratégia concertada e atinada (e de investimento maciço). José Avillez levou ao máximo a sua criatividade e, numa jogada claramente ibérica, está a dar nas vistas. Se o Tavares falhou aos inspectores, então tudo falhou.

Gemelli - Não me aborreçam com detalhes, do tipo "restaurante italiano fora de Itália não tem direito a estrelas". No ano passado... Il Gallo d'Oro... pois é! Augusto Gemelli ainda tem o seu coração no sítio, e o seu talento procura e merece quietude.

DOC, na Folgosa-Douro - Por incrível que pareça, ainda há muitos gourmets portugueses que não conhecem nem Rui Paula nem este templo suspenso sobre o Douro. Conhecedor da proteína portuguesa em geral e nortenha em particular, o chefe está imparável.

Tia Alice, em Fátima - Fiquei profundamente triste quando me inteirei do feedback negativo que os portugueses se entretiveram a enviar para a Michelin, dizendo mal do Tia Alice. Absolutamente injusto. Cozinha de coração, trabalho amoroso e profissionalismo a toda a prova.


Feitoria (Altis Belém Hotel), em Lisboa
- Grande brigada de cozinha. Muito bom sommelier (o melhor de Portugal, neste momento?). Grande sala. Serviço catita. Sabor português, bem português, em formato cândido e generoso.


Talheres vermelhos

Tasca da Esquina, em Lisboa - Vítor Sobral tem a melhor equipa do país. Cinco crominhos que todos e cada um deles podiam abrir uma casa amanhã, sozinhos, que seria um enorme êxito.

Alma, em Lisboa - Paradigma BCBG (bon chic bon genre, para quem não sabe): sala fria e sensaborona, mas cozinha atraente, travejada de influências de fora. Henrique Sá-Pessoa tem o que é preciso para animar uma casa destas.

Spazio Buondi, em Lisboa - Os Nobres! Sempre os Nobres!

Quinta do Prazo, em Valença - Amaya Guterres e Paulo Fonseca, dupla imbatível que também é casal e tem muitos filhos e trabalha de sol a sol e...

Puttanesca, em Leiria - Cozinha de grande talento, esta de Nuno Santos. Tudo feito num forno de pizzas, com timings e controlo infalíveis.

sábado, 14 de novembro de 2009

Tia Alice

R. do Adro
2495-557 Fátima
T 249 531 737
F 249 534 370
E tialice@mail.telepac.pt
Cozinha: Alice Marto (mãe) e Lúcia Marto Clemente (filha)
Fecha: 2f e jantar Dom.
Preço médio: 30 Eur


Não há ano que passe, completando os habituais ciclos de guias, escolhas e recomendações, que o Tia Alice não saia em posição cimeira a nível nacional. Alice Marto construiu, com a sua determinação e a entrega total dos seus filhos, o que todos dizem ser impossível ou projecto votado ao fracasso. Na estrada de Fátima para Ourém, longe de tudo, foi na casa que era dos seus pais que decidiu instalar um restaurante. Na filha Lúcia Marto Clemente encontrou marechal de campo e fonte conceptual para o tal projecto impossível. São ao todo sete irmãos, e todos apoiaram o projecto da sua mãe. Desde 1988 tem as suas portas abertas e reproduz dia após dia o paradigma familiar de outros tempos: “vamos comer à Tia Alice”; dito frequente entre os seus muitos sobrinhos. “A minha mãe sempre gostou de ter muita gente em casa para almoçar ou jantar”, recorda Lúcia, que desde há muitos anos partilha os fogões com Alice Marto. Alma e calor, são as notas matriciais que registamos numa primeira visita e que depois revisitamos tantas vezes quantas as que lá voltarmos. Reflecte-se e vive-se em tudo, desde o ambiente de grande integração, espiritual, até à comida, celestial. A sensação de se sair sempre melhor do que nela se entrou, o que nem sempre – raramente?... – se consegue mesmo nos restaurantes da nossa preferência.
A cozinha que se pratica no Tia Alice é antes de mais caseira, com um registo acentuadamente regional. Pratos “terra”, como a Copiosa Vitela assada em forno de lenha ou a localíssima Chanfana; pratos “mar”, como o Arroz de Peixe com Robalo ou a inefável Açorda de Camarão; todos eles constituem exegese transparente do sabor português, porque são ligação directa à proteína e ao mais sublime da arte da cozinha, que é o tempero. É no gosto de cada um que vive, afinal, o gosto português. Altura, por isso, para rejeitar a ideia de monotonia que muitas vezes é apontada às cozinhas ditas tradicionais. Se hoje o gosto está diferente de há 15 anos; se hoje temos azeites melhores que nunca; se os vinhos que temos são radicalmente diferentes do que tínhamos então; como podemos considerar que há cozinhas que “não mudam”? Além disso, temos os olhos postos no labor e vontade de Lúcia Marto Clemente, que vemos agora assumir o seu lugar de chefe de cozinha, sucedendo à sua mãe. Só por si, já é uma revelação. Do seu coração, podemos e devemos esperar muito.

Arroz de Peixe (com Robalo ou Tamboril) – Arroz de sabores marinheiros cândidos, com recorte caseiro. Há um caldo de peixe que se sente no arroz e que dá um efeito de grande elegância ao conjunto. A posta de robalo ou tamboril servida com o arroz de peixe denuncia o estatuto do Tia Alice de só servir peixe fresco.

Açorda de Camarão - Camarão fresco, escaldado/cozido com a casca, que depois vai juntar-se a cozedura rápida de cascas e cabeças, reservando-se os camarões. Uma fritura de alho e azeite dá a gordura essencial e suficiente para fazer o envolvimento do pão. Integração no final no caldo, onde entram os camarões descascados. Na mesa, mistura-se o ovo inteiro.

Chanfana - Mais fresca e ligeira do que a maioria das chanfanas. Utiliza-se pouca gordura e o vinho é seleccionado. Temperos portugueses, tais como colorau, alho, cebola e pimenta preta são utilizados na cozedura da carne. O prato é finalizado no forno bem quente, em tacho de barro tapado.

Vitela assada - Assadura muito lenta, ficando retidos todos os sucos da carne, que faz o fundo inefável do molho, praticamente isento de gordura animal. A qualidade da carne é determinante para o êxito deste prato e o molho, feito a partir dos sucos, é depois enriquecido e reduzido, até chegar ao grande equilíbrio com a proteína.

Casinha Velha, nos Marrazes

R. Professores de Portelas 23
2415-534 Leiria
T 244 855 355
F 244 855 951
E geral@casinhavelha.com
W www.casinhavelha.com

Fica na mesma rua do Tromba Rija, nos Marrazes, perto de Leiria, este restaurante. Ricardo Costa decidiu investir “numa alternativa ao Tromba Rija”, como afirma acerca da primeira motivação para tomar conta do Casinha Velha. O restaurante já existia, com alguns conceitos interessantes, mas com decoração e atmosfera que não agradaram ao jovem empresário. O seu pai, Aníbal Menino, proprietário do restaurante Menino, também nos Marrazes, deu-lhe bons conselhos quanto ao perfil de casa que deveria montar. “Os antigos proprietários não souberam manter o padrão da oferta”, afirma o actual proprietário, em jeito de exemplo do que ele não quer que aconteça no Casinha Velha. “Fiz estudos de hotelaria no Estoril, aprendi muito com a família, e creio hoje ter aqui uma qualidade que ombreia com os melhores”.
Na cozinha estão a mulher e a sogra de Ricardo Costa. Cozinha essa que não tem equipamentos supérfluos. “Fazemos o nosso próprio pão, assamos e assados em forno convector de última geração”. Não existe renúncia ao forno a lenha, antes se considera que “conseguimos resultados óptimos com o equipamento que temos”. Apesar disso, o cabrito é assado “noutro lado”, a fragilidade da proteína e a tendência que tem para secar obriga a soluções alternativas, seguindo a senda dos antigos.
À mesa, antes da refeição passa um tabuleiro com queijos portugueses e enchidos da região. É-nos confiado para, quando o dispensamos, ser pesado. No final, paga-se a diferença de peso. Não fomos por esta via. Preferimos investir na inevitável morcela de arroz, que Ricardo Costa afirma ser dali mesmo, dos Marrazes. Tomámos nota.
A oferta de vinhos passa sempre pelo seu crivo, apesar de não beber. “Nesta casa, eu provo todos os vinhos que temos em carta”. Considera um trabalho que vem de escola, bem como a afinação das temperaturas de serviço e, claro, dos copos de prova mais adequados. “Aqui só temos copos e decanters Riedel”. No coleccionismo, sai ao pai, até numa forma que se diria mais moderada. “O meu pai chegou a ter uma garrafeira com 120 mil garrafas”. Sobre a situação actual, diz que “não só a profusão de marcas é muito maior, como o próprio mercado mudou”. Antigamente, afirma, “havia poucos produtores importantes”. Hoje “há marcas novas todos os dias”, exigindo uma dinâmica comercial totalmente diferente e um relacionamento mais próximo dos produtores.
O vinho da casa é estabelecido e assumido frontalmente por Ricardo Costa. Neste momento, corre o Vila Santa de João Portugal Ramos. Já nos vinhos a copo, são os varietais do Esporão os utilizados, opção invulgar e, numa certa medida, luxuosa. Os azeites também são do Esporão, “tanto na cozinha como na sala”. Medidas que denunciam uma estratégia que se adaptou na perfeição à crise, que aparentemente em nada afectou a operação deste Casinha Velha, que se recomenda.


Cabrito Assado – Um dia a marinar em vinha d’alhos, a que se segue uma assadura muito lenta. Este assado não é feito no forno convector. Ricardo Costa diz que “nas muitas e variadas tentativas, os resultados foram sempre decepcionantes”. É assado "noutro lado".

Fritada com Açorda – Prato típico da região. Carne de porco – só entram costela e carne magra – frita em azeite. O acompanhamento é o desejado, constituído por grelos ou batata.

Arroz de Pato desfiado com frutos
– Ricardo Cruz consegue arranjar patos mudos. Servem-se à Quarta-feira e ficam desde Segunda em marinada. O segredo do arroz de pato passa muito pela correcta e criteriosa escolha da proteína.

Galo assado no forno – Os galos são caseiros e levam um tratamento especial que os amacia particularmente. A marinada é segredo da sogra de proprietário do Casinha Velha. O acompanhamento é arroz de vegetais, batata assada e esparregado de bróculos, opção que não se vê muito.

Vidal Agostinho, o melhor leitão do mundo

Vidal Agostinho da Silva Ferreira
S. Martinho
3750-062 Aguada de Cima
T 234 666 697



Quem sai aos seus não degenera. Vidal Agostinho da Silva Ferreira é filho de José Vidal Ferreira, proprietário do conhecido Vidal, na Aguada de Cima. Todos em conjunto – incluindo um outro filho de José Vidal – oficiavam juntos no que é considerado, ainda hoje, a grande referência do Leitão à Bairrada em matéria de restauração. Há já muitos anos, Vidal Agostinho decidiu sair do negócio familiar, dedicando-se à indústria metalomecânica, em particular instalações e equipamentos inox. O seu talento e os conhecimentos que adquiriu junto do seu pai cedo lhe requisitaram energias para prosseguir a sua arte. Assar leitão não é nenhuma brincadeira de crianças; as variáveis são tantas que se torna praticamente impossível conseguir assaduras semelhantes e com qualidade. O que Vidal Agostinho fez foi cumprir o que parece ser um desígnio familiar, assando leitões em sua casa. Predestinação e vocação, dir-se-ia. Neste momento, findas que estão obras em profundidade, o futuro está em aberto, no domínio das hipóteses.
A filha mais nova de Vidal Agostinho, Mariana Vidal, estudou na Escola de Hotelaria de Coimbra e está por lá a trabalhar. Sempre que pode, está ao lado dos seus pais, a ajudar no trabalho de lume e no corte do leitão. Esta última tarefa “é das mais difíceis de fazer no leitão e muitas vezes compromete a qualidade final percebida”, explica o pai. O seu filho Vidal é o mais velho dos três e também sabe cortar, mas está a seguir outros caminhos, pela engenharia informática. Até ver, dizemos nós, que o apelo do sangue e da terra tem operado milagres maiores. A outra filha, Marisa Vidal – a do meio - , é professora de Português em Lisboa e não se prevê no curto prazo o seu regresso às origens. “O importante é que cada um se realize e faça aquilo de que gosta”.
Os leitões que Vidal Agostinho utiliza na assadura são já fruto da sua intervenção no cruzamento de raças. Trata-se de ir buscar à bísara componentes que o porco local não tem. O comportamento nos bonitos e competentes fornos de lenha que ele próprio construiu é supremo. Gorduras praticamente inexistentes, sabor do leitão muito intenso e textura perfeita da pele, atingindo o objectivo do vidrado sem lhe estragar a superfície nem a ligação com a carne que subjaz.
Posto, aprovado e aclamado o sublime leitão à Bairrada que se prepara em casa de Vidal Agostinho, há que provar também a Cabidela de Leitão; a Feijoada de Leitão; e o Fígado de Leitão. Enquanto a primeira evoca visualmente o sarapatel de Portalegre – no sabor divergem bastante -, as outras duas saem do labor cuidado nos fogões competentes da casa. Uma nota final para chamar a atenção para a lógica de produto inteiro que representa a oferta culinária desta casa, aproveitando tudo o que o pequeno leitão tem para dar.


Leitão assado à Bairrada – Múltiplos segredos orlam esta preparação, impecável nas mãos de Vidal Agostinho. Ele domina-os todos e vai mais além, seleccionando criteriosamente os bacorinhos que dá a assar. Prove este e outro, por bom que seja, em simultâneo. Só assim poderá ver a diferença.

Cabidela de Leitão – Feita com as miudezas do leitão em cru, cortadas em pedacinhos. Numa caçoila, faz-se um refogado com azeite, cebola, alho, louro onde se colocam os miúdos. No final, junta-se o sangue cozido e o molho resultante da assadura do leitão. Também se faz um arroz de cabidela de leitão, que em vez de cruas leva as miudezas guisadas e não leva sangue.

Feijoada de Leitão – Feita com as sobras do leitão assado. Desfaz-se todas as partes, incluindo a cabeça, desossando, e leva-se a integrar em feijão branco. Este prato é um óptimo aproveitamento caseiro para quem compra leitão ou não o consegue consumir todo.

Iscas de Fígado de Leitão – Feitas a partir do fígado de leitão, temperadas com sal, alho e pimenta preta, a que se junta um golpe de vinagre. Envolve-se tudo bem e vai a fritar em banha de porco, onde se faz uma cebolada. Com as iscas reservadas, faz-se uma cebolada na gordura que restou, que depois vai cair em cima delas.

Praia do Tubarão

Gafanha da Encarnação
Av. Marginal José Estêvão 136
Costa Nova
T 234 369 602
E 03tom07@gmail.com
Fecha: 2f



A vida de enguia não é fácil. Começa os seus primeiros dias de vida no Mar de Sargaços, centro atlântico de desova dos esguios e longilíneos peixes. Ali acorrem, vindos de todos os rios europeus e norte-americanos que albergam as enguias crescidas, para depositar os seus ovos. Não admira, já que é um verdadeiro oásis tropical, rico em algas – sargaços –, particularmente salgado, e a temperatura das suas águas ronda os 28ºC. O ponto nevrálgico da imensa ilha verde flutuante é na orla do Golfo do México e a sua mancha estende-se por mais de 3 mil quilómetros para norte, numa largura de mais de mil. Com apenas 1 cm de comprimento, lá vêm então os peixanitos pelo Atlântico fora, para em águas portuguesas se deterem nos nossos estuários. Os casos mais notáveis são a Ria Formosa, no Algarve, e a Ria de Aveiro. Quando cá chegam já vêm com cerca de 3 cm. Virtude da transição água salgada/água doce e também da densidade e qualidade dos nutrientes presentes nesta última, ali ficam a gozar as águas da grande bacia ponteada por Ovar, Estarreja, Murtosa, Costa Nova e Aveiro. Uma espécie de Las Vegas para enguias, onde tudo existe em abundância. O exercício físico e os diferentes habitats atravessados até chegarem a nós são, só por si, factores diferenciadores destes peixes únicos, que muitos erradamente confundem com répteis ou lampreias. Depois, a sua carne saborosa presta-se a manipulações culinárias diversas, todas elas um regalo quando bem executadas, convertendo muitos à enguia. E, finalmente, torna-se difícil estar naquela grande e profícua ria sem sequer ter a inclinação de saber o que se faz por ali a partir das enguias. A popularidade entre os locais é grande, há restaurantes que executam bem e a qualidade média não está mal.
Fomos confirmá-lo à Costa Nova, destino estival fronteiro a Aveiro, instalada na língua que separa o mar da ria. Adriano Ferreira abriu-nos as portas do seu restaurante, Praia do Tubarão, uma das casas outrora propriedade de pescadores e hoje, quando a nós, referência da cozinha da sua região. Reconhece-se bem o local, pelo casario de madeira pintado com listas coloridas verticais ou horizontais. Estão hoje com um aspecto imaculado e algumas delas albergam restaurantes. O Praia do Tubarão funciona numa sala pequena no piso térreo e dispõe de esplanada de onde se vê a ria e quem passa pela estrada marginal. Adriano Ferreira é da Mealhada mas a sua mulher é da Costa Nova, pelo que é bom de ver o que aconteceu. Casaram e ficaram, trabalhando ambos alguns anos na Marisqueira da Costa Nova, onde aprenderam o ofício como poucos. Chegada a altura da autonomização, o casal não teve dúvidas. Nasceu assim o Praia do Tubarão, nome que se deve “à necessidade de ter um nome que não há em mais lado nenhum”. Nome, e lugar, porque este Tubarão tem muitos atributos positivos.

Caldeirada de Enguias – Feita segundo a tradição da verdadeira caldeirada. Normalmente confundida com a variante “fragateira”, a caldeirada comporta apenas uma proteína animal, quando a interpretação popular mais vulgar é de que leva vários tipos de peixe. Outra diferença é a diminuta quantidade de água que leva. A montagem na panela é em camadas alternadas de enguias cortadas em bocados, batata e cebola.

Enguias fritas – A frescura do peixe é tudo, o que, estando nós onde estamos, é assunto resolvido a priori. A preparação das enguias é o aspecto mais complicado, já que a fritura se resume à passagem por um polme de farinha, seguida do processamento a temperatura elevada.

Ensopado de Peixe – Mistura caldosa ligada que tem o peixe como base. Constitui uma variante de sabor e tem muitos adeptos no Praia do Tubarão.

Peixe frito com Arroz de Berbigão – Arroz tradicional, feito com miolo de berbigão e caldo de cozedura de peixes e mariscos. Importa deixá-lo malandrinho, molhado. Acompanha depois o peixe frito, previamente passado em polme de farinha.

O Carrossel da Bebé

O Carrossel da Bebé
Lg. dos Pescadores
Cova-Gala
3090-664 Figueira da Foz
T 233 431 457
M 964 300 663
E restaurantecarrossel@gmail.com
W restaurantecarrossel.blogspot.com
Contacto: Bebé
Fecha: 2f (no Verão não fecha)
Preço médio: 18 Eur


Se Aveiro e a Figueira da Foz foram bafejadas pelas boas moções dos deuses, que entenderam bordejá-las de belas e copiosas praias, Leiria e Coimbra foram menos afortunadas, tendo de procurar o refrigério marítimo para além das suas saias. Leiria ficou com as praias de São Pedro de Moel e Vieira, enquanto Coimbra estabeleceu canal directo com a Figueira da Foz. Destino estival de eleição, portanto, para os conimbricenses, o que incluiu, em tempos idos, a família de Bebé – pediu-nos para ser assim tratada, note-se -, proprietária do restaurante Carrossel, na praia da Cova, em Gala, Figueira da Foz. Só que Bebé foi para ficar, casou e acabou por se dedicar em exclusivo à actividade restauradora. Certo é que temos todos de lhe agradecer a empresa, porque o receituário que pratica e partilha no Carrossel é genuíno e tirado dos costumes dos pescadores, da tradição e da história; só ali o podemos provar na medida plena. Caso da Raia de Pitau, prato que sai do génio conserveiro de outrora – secava-se a raia ou enxambrava-se para cozinhar depois – a que se juntou o “pitéu”, que é um molho produzido a partir dos seus fígados, particularmente saboroso. Caso também da chora de línguas, sopa de bordo enraizada nos tempos dos primeiros bacalhoeiros na Terra Nova. Fazia-se então com as caras – cabeças – de bacalhau uma espécie de caldeirada que, por ser a primeira coisa a esgotar-se a bordo, fazia “chorar” por mais. Bebé, sabiamente, foi às línguas – abundantes porque quase ninguém as quer - buscar parte ainda mais saborosa, ela própria também comestível. Com a introdução de marisco fresco, fixou-se o prato como Chora de Línguas com Marisco. Não deixamos o assunto do bacalhau sem darmos com três declinações mais. As línguas voltam à liça, na em boa hora criada Açorda do Mar com Línguas de Bacalhau panadas. Aparecem ainda as canónicas pataniscas, apresentadas a preceito no Arroz de Couves com Pataniscas de Bacalhau. E, finalmente, os Samos Marisqueiros. O samo – ou same – é a bexiga nadadora do bacalhau e, em prato de tacho emprestam parte da sua textura e o seu grande sabor a todo o caldo. Não é, como muitos dizem, o bucho do bacalhau. Quem já conhece os samos não precisa de apresentação; quem ainda não conhece deve guardar-se e ter o primeiro contacto com aquela parte do fiel amigo aqui, no Carrossel.
Puxando à Figueira da Foz mais do que ao mar propriamente dito, Bebé tem três grandes soluções para quem procura sabores genuínos e diferentes. São eles a Massala de Peixe, Dobrada do Mar à Figueira Antiga e o Arroz Marinheiro. Nenhuma delas se parece com os pratos respectivamente evocativos, tirando a ligação hidratos de carbono com proteína. Todos são verdadeiras experiências de iniciação ao que o mar dos primeiros inspirava.

Raia de Pitau à Minha Moda – A “moda” é a de Bebé e visa sobretudo fixar a receita que inclui os fígados

Chora de Línguas com Marisco – Refogado com azeite, cebola, tomate, alho e louro, como em todos os fundos. Línguas demolhadas e dessalgadas, juntam-se ao refogado, mas não têm muito tempo de cozedura, porque são frágeis. Depois junta-se marisco.

Samos marisqueiros – A bordo dos bacalhoeiros, quando se escalava o bacalhau, os samos tiravam-se da parte rejeitada da espinha. Limpavam-se e salgavam-se, tal como se fazia com as caras, línguas e lombos. Os Samos correspondem à bexiga natatória, e ficam junto à cartilagem do peito, por baixo das guelras.

Açorda do Mar com Línguas de Bacalhau panadas – Açorda feita com muito alho picado e passado em azeite, bem puxado. Amêijoa, camarão e berbigão, tudo migado. Depois, pão de segunda e está feita a açorda.

Arroz de Couves com Pataniscas de Bacalhau – As pataniscas são normalmente feitas com bocados de bacalhau, apresentando-se fofas. Outras são essencialmente feitas de farinha e muito pouco bacalhau. As de Bebé são rijas, finas e são quase 100% bacalhau.

Dobrada do Mar à Figueira antiga – De novo os Samos. Azeite, alho, coentros. Entremeada e rodelinhas de chouriço caseiro. Chama-se-lhe “dobrada” porque é evocativa do perfil da dobrada “carnívora”.

A Cozinha da Beira Litoral

Mais um ponto nevrálgico da gastronomia portuguesa

A costa atlântica de Portugal não passa despercebida a ninguém. Nalguns pontos de quase impossível penetração, noutros verdadeiro prodígio em época estival, a costa portuguesa criou e fez crescer um paraíso submerso no qual ainda temos muito para desbravar. A copiosa fatia do património gastronómico português de que falamos tem dois grandes magnetos na Figueira da Foz e na bacia confinada por Aveiro, Murtosa Ovar e Estarreja. Por essas paragens, souberam os deuses inspirar tanto os pescadores da costa como os muitos marinheiros que se foram para os longínquos mares da Terra Nova com sabores e receitas que felizmente ainda vivem, na sua essência. Corações iluminados ocupam-se de os tornar bem vivos nas suas interpretações. Estão nesta linha de forma matricial os pratos que Isabel (Bebé) oferece diariamente no seu Carrossel, sugestivamente instalado junto à praia de Cova, em Gala, povoado piscatório que bordeja a Figueira da Foz. Lá estão à nossa espera, por exemplo, a Raia de Pitau, um pitéu secular que tem alquimia assente na fusão dos fígados da dita com temperos simples como o colorau e fundo imaculado como a cebola e o alho. Também está a Chora, sopa de bordo outrora produzida pelos pescadores para aproveitar as cabeças, ou caras, de bacalhau e que, acabando-se depressa, fazia chorar por mais. Isabel fá-la hoje com línguas de bacalhau. Os Samos (ou sames), também de bacalhau, aproveitamento genial da barbatana bexigueira do fiel amigo. Feijoadas, massas, arrozes – existirá melhor arroz em Portugal que o do Baixo Mondego? -, com peixes e processamentos diversos. Local referencial, pois, para iniciar a leitura atlântica de Portugal, sabiamente traduzida para a modernidade pela proprietária do Carrossel.
Do mar passamos para a Ria, onde fixamos e reconhecemos a capital da enguia. Adriano Ferreira é da Mealhada e foi o amor que o levou para a Costa Nova, terra natal da sua mulher. Juntos fizeram há duas década o Praia do Tubarão, onde revemos as caldeiradas e os ensopados feitos quase como dantes. Dizemos quase, porque – felizmente - na cozinha tudo está em constante mutação e o nosso sabor também. Quando ali comemos, ganhamos a certeza estar a provar o ensopado de peixe por que os antigos suspiravam, tal a definição e profundidade dos sabores. Boa oportunidade de revisão de conhecimentos para quem, obtusa e obstinadamente insiste em classificar pejorativamente esta cozinha como “a mesma de sempre”. As enguias fritas são petisco inefável e o escabeche das mesmas inscreve adjectivos favoráveis na memória mesmo para quem os escabeches são só coisa ácida.
Por estas latitudes em que nos encontramos, mais para dentro da terra firme, grassa uma outra grande iguaria nacional, emblema digno de bandeira na Beira Litoral. É o Leitão à Bairrada. Diz-se que qualquer escolha é por definição injusta, mas no caso do bacorinho bairradino isso não se aplica. Corre na família de José Vidal Ferreira, um sangue sabedor e profundo conhecedor da proteína. Os que não conhecem o Vidal, em Aguada de Cima, só esses poderão dizer que há melhor. Ou quem conhece Vidal Agostinho Silva Ferreira, um dos filhos de José Vidal, que em S. Martinho se dedica há uns anos só à assadura do leitão. Tem a quem sair na fibra e paixão pela perfeição. Do cruzamento da raça bízara com o porco local saem exemplares perfeitos que nos fornos de lenha desenvolvidos e construídos por si próprio ganham alquimicamente estatuto real. A sua filha Mariana Vidal já está arregimentada e pronta para secundar o pai, terminados que estão os seus estudos de cozinha na escola hoteleira de Coimbra. Vamos ver se nasce ali um restaurante ou se continuamos alegremente a encomendar e ir buscar o melhor leitão do país. Qualquer opção que a família faça, para nós está bem feita.
Descemos por terra até Leiria para dar com o restaurante Casinha Velha, de Ricardo Costa. Prosseguimos a toada carnívora, com títulos exemplarmente executados. Sem discutir a proveniência do bicho, provamos um grande cabrito assado, daqueles em que a simplicidade é praticamente o único segredo. Assinatura, afinal, de toda a cozinha tradicional portuguesa. Assado brilhante é também o do galo, seguido de perto pelo arroz de pato desfiado que no Cozinha Velha se serve com frutos.
Deixamos para o final a que consideramos uma das grandes glórias da cozinha regional do país. Tem nome de conto efabulado, ao mesmo tempo que nos chama a todos para a sua extraordinária família. É o Tia Alice, em Fátima. Nos olhos claros e ternurentos de Alice Marto, fundadora e ainda oficiante cozinheira, conseguimos ver a essência e origem do prazer que nos dá o que nos põe na mesa. O calor do seu coração gerou uma família de grande talento e união, ao mesmo tempo que criou na sua filha Lúcia um sentido ascensional de realização que é, só por si, um desafio para quem ali se restaura. Duas figuras muito especiais, dínamos imparáveis de trabalho e criação, cujo campo magnético tem braços felizes nos irmãos e cunhada que animam a melhor coreografia de sala que conhecemos. Conferimos o arroz de peixe, regressamos à Chanfana, e entramos gulosos e vorazes pela Açorda de Camarão e pela Vitela Assada adentro, para reconhecer que, de facto, a grande tradição culinária portuguesa ainda vive na casa e no coração das pessoas.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O serviço nos restaurantes

Descobri o antídoto para a crise de nervos que é aterrar num restaurante onde até se come bem e ser alvo do pior serviço do mundo. Mudo-o, forço-o a fazer como eu quero e gosto e, de repente, é só comer! As resmunguices dos empregados passam a ser reflexo do “mal” que lhes fiz, o que é particularmente confortável, quando tantas vezes já fui tão injustiçado.

Passo a explicar. Outro dia, pedi um copo de um rosé 2008 para almoçar. Veio o 2007, em vez daquele que estava anunciado na carta. “Olhe fachavor veja lá se na carta não está 2008, porque era esse que eu queria”. Resposta: “Nós estamos a servir o 2007”. Contrarresposta: “Se for o 2007 que está na carta, então fico com um copo desse, mas se for o 2008, é esse que eu quero”. “Penso que não, que é o 2007 que está na carta”. “Custa-lhe muito verificar? Quer que eu faça isso por si?”. Semblante do empregado carregado, para logo passar a corado. “Desculpe, desculpe”. Agradeci e pedi-lhe: “para que o almoço não corra mal, vou-lhe pedir que me facilite a vida ao longo das duas próximas horas, pode ser?” Vitória! O sentimento apoderou-se de mim e nem as incursões inapropriadas do chefe de sala me enervaram como sempre me enervaram tanto. Até ganhei mais outro round, quando trouxeram o risotto errado ao meu amigo. “Não foi isso que pediram? Tenho ideia que sim”. Resposta: “não foi isto que pedimos porque isto nem sequer está na carta do almoço”. O dito “chefe” foi a correr buscar a carta, convencido de que me ia arrumar. Perdeu, claro, mas ainda perguntou “não querem ficar com este risotto? Está muito bom! “Não”, foi a resposta veemente. Depois, foi só pedir para trazer outro prato, reparti o que eu estava a comer, e depois lá veio o risotto certo, em dois pratos. Impecável!

No final da visita, classifiquei o serviço como “bom”. Porquê? Porque é! Fizeram tudo o que lhes pedi e não conseguiram impedir-me de avaliar a comida, verdadeira e primordial razão para se ir ao restaurante. Fico contente. E ficam também contentes aqueles que sempre acharam que a importância que eu dava ao serviço era exagerada. Solução é mesmo obrigar o serviço a ser como eu quero!