quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Santi Santamaria

Os mais atentos lembram-se. Santi Santamaria foi o chefe que fez o impossível, quando fixou um restaurante espanhol na galáxia triestrelada do Guia Michelin. Foi depois dele que tudo aconteceu. É por causa dele que tudo ainda continua a acontecer na restauração espanhola. Cozinha de proximidade. Cozinha de produto. Respeito pela tradição. Invenção. Ele harmonizou de forma sublime este difícil tetraedro.
Ainda assistiu ao anúncio da transformação - desculpe, importa-se de repetir?... - do El Bulli em fundação. "La cocina a desnudo" prefigurava um andor processionário que talvez não fosse o pórtico ogival que todos pensavam. O mundo inteiro fê-lo cair no ridículo. À excepção de alguns - poucos - correlegionários leais, deixaram-no sozinho. Ou, melhor, quiseram-no deixar sozinho.
Os cozinheiros são pessoas desajeitadas, sem maneiras e apaixonadas. Ele foi vítima de tudo isso.
Quando se fizer a história, aquela que só a distância temporal consegue e deve produzir, ver-se-á o fundamental da sua contribuição para o enobrecimento da arte extraordinária que é a alta cozinha.
Tive um jantar inesquecível no Can Fabes, em Sant Celoni, há cerca de 10 anos, inefável iniciativa de João Roseira, da Quinta do Infantado. Amigos que ainda hoje somos e seremos para a vida, David Lopes Ramos, João Afonso e João Paulo Martins, tivemos ali a refeição perfeita. Nem os vinhos mal escolhidos prejudicaram o que vivemos em conjunto, naquela mesa com vista para a cozinha. Ficou-me um prato na memória, a que Santi chamou "Mar y Tierra", e que é o "Toucinho com Caviar". Como eu, Santi era louco por toucinho. Foi exactamente à décima tentativa que na minha casa consegui reproduzir, ainda que deficientemente, aquele prato extraordinário. O que só foi possível com a generosíssima assistência telefónica do próprio Santi. A questão estava nas salmouras por que o toucinho tinha de passar.
A morte de Santi Santamaria está, do ponto de vista estrito da complexa economia da vida, errada. Mas o momento que no mundo se vive em torno da pressão fascizante criada em torno das "novas tendências" dá-lhe um sentido redentor. "A cozinha está no coração", terá ele dito, antes de sucumbir, perante os seus amigos espanhóis no seu novo restaurante em Singapura.
Eu sei que nunca irei conhecer um coração melhor que o de Santi.