quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Jonathan Nossiter: “Eu não sou um profeta”




Realizador do polémico Mondovino, um filme de tese no qual colocou face a face industriais e autores de vinhos, Jonathan Nossiter escreveu um livro ainda mais acutilante, “Le Goût et le Pouvoir” – Gosto e Poder -, publicado entre nós com o título Mondovino. Não se trata do livro do filme, nem a mensagem é a mesma, já que se fixa em definitivo na exposição das complexas redes de interesses que envolvem jornalistas, produtores, enólogos e negociantes, numa prosa de fácil leitura, à qual ninguém fica indiferente. Nossiter vive no Brasil com a sua família, a sua profissão é cineasta e com a publicação do livro considera encerrada a sua contribuição pública para o cenário mundial do vinho. Cidadão do mundo, nasceu nos EUA e por força da profissão do seu pai como correspondente internacional do Washington Post, viveu em França, Inglaterra, Itália, Grécia e Índia. O invulgar conhecimento que tem do negócio e das pessoas do vinho – já foi sommelier - , juntamente com a sua perspectiva independente, tornaram-no no mais qualificado relator e delator dos fenómenos globalizantes do vinho, na sua opinião a mais perigosa das actuais tendências do sector.


É pena ter-se chamado Mondovino à tradução portuguesa do Le Goût et e Pouvoir.
Sim, isso não foi escolha minha. Nos outros países, ele chama-se Gosto e Poder. São obras totalmente distintas; a ideia do livro não é retomar o conceito do filme. Até porque a pessoa que escreveu o livro é diferente da que fez o filme.

No livro, dá uma tónica cultural acentuada ao vinho
Tive duas coisas que me animaram. A primeira foi falar do vinho num contexto cultural geral; onde toda a gente cabe. O vinho tornou-se num produto do consumismo do mercado e no entanto ele vem dos primórdios da relação do ser humano com o planeta e com os outros seres humanos. A outra coisa, foi poder dar voz a alguns produtores que têm uma forma radicalmente diferente de falar daquela que os críticos utilizam.

Por outro lado, ao ir contra a moda, está a criar uma outra moda…
As coisas não se devem ver assim. Eu respeito toda a gente. Eu não sou vegetariano, por exemplo, mas respeito aqueles que o são. Da mesma forma que repudio os vegetarianos que atacam toda a gente que come carne! Nos vinhos, fiquei com a fama de atacar o crítico norte-americano Robert Parker e de ser seu inimigo, o que não é muito justo. Eu não tenho nada contra ele, até acho que ele tem lugar no mundo do vinho. Só me preocupa que ele se torne dominante no mundo.

Deduz-se que não gosta dos “vinhos Parker”.
Pessoalmente, eu não gosto dos vinhos com pouca acidez, concentrados, com sabor adocicado, grau alcoólico elevado e notas fortes de carvalho francês. Eu gosto de vinho com acidez pronunciada, por exemplo e o facto de por vezes um vinho estar oxidado não é suficiente para eu o por de parte.

Um vinho com defeitos não é necessariamente um mau vinho.
Claro que não, há que olhar para ele como um conjunto. No Brasil, tanto a temperatura ambiente como a pressão barométrica fazem evoluir os vinhos mais depressa do que noutros sítios. Encontrei há pouco tempo umas meias-garrafas de Frei João branco num supermercado do Rio de Janeiro que achei fantásticas. Um provador dos nossos dias teria dito que elas estavam arruinadas, mas deu-me muito prazer bebê-las.

Os leitores do seu livro podem convencer-se que abomina tudo o que é vinho moderno e concentrado?
Não, nem pensar! Eu gosto do vinho que é expressão directa do sítio de onde provém. Especialmente para quem vive na cidade, é aí que reside muito do seu interesse. Se numa prateleira os vinhos forem todos iguais, o que ganhamos com isso?

Os vinhos ditos biológicos trouxeram essa promessa…
E muitos falharam! Se eu sou normalmente contra os vinhos industriais, por nos afastarem dos vinhedos e do terroir original, também sou muitas vezes contra os “vinhos bio”. Em França, há a moda do “bar a vins bio” (bar de vinhos biológicos), quando em muitos só há marketing, vinhos maus, mal feitos. Sou radicalmente contra essa onda.

Facilmente surgem correntes que mais parecem religiões.
O que é perverso e se deve evitar absolutamente! A biodinâmica nalguns produtores esconde muitas vezes atitudes radicais e extremistas.

Refere no seu livro o borgonhês Dominique Lafon como exemplo de inteligência na utilização da biodinâmica.
E é de facto exemplar, porque não abdica do seu conhecimento herdado das gerações anteriores nem da sua inteligência para adoptar. Ele melhorou as suas vinhas de Montrachet, conseguiu resultados muito bons para os seus vinhos e não teve de se render ao fanatismo biodinâmico.

Há muitos caminhos para chegar aos bons vinhos?
Muitos, quase tantos quantas as pessoas que os estão a fazer. Isso foi qualquer coisa que eu quis deixar muito claro com o meu livro. A diversidade é muito importante.

Na Borgonha, com duas castas apenas – Chardonnay e Pinot Noir – a diversidade não é problema.
Isso foi trabalho do tempo e também da exigência de individualidade que caracteriza o povo francês. Cada um parece saber muito bem o que o distingue dos restantes e tem muito orgulho nisso. Esse que pode ser um grande defeito é também uma grande virtude, porque as influências exteriores e as modas praticamente não têm lugar. É que às vezes, especialmente na Borgonha, é nos aspectos mais finos e subtis que estão as grandes diferenças. Elementos históricos, geológicos, humanos, culturais, proporcionam em conjunção uma personalidade ímpar aos vinhos.

Um potencial realizado, contra o potencial ainda por descobrir noutros locais?
Nas terras do Luís Pato, por exemplo, quem sabe qual pode ser o futuro. O passado é rico e relativamente conhecido. Talvez não tenha chegado ainda ao nível da Borgonha, mas há muito poucas no mundo que conseguiram esse feito. Há que conhecer melhor e continuar sempre esse trabalho, resistindo à globalização.

Como Bordéus?
Bom, Bordéus é diferente. O que determinou a importância e evolução de Bordéus foi claramente o negócio, a internacionalização e as exportações. São mais de oito séculos de desenvolvimento a pensar em agradar às comunidades exteriores. Aliás, só assim se explica que desde há 25 anos os seus vinhos se tenham tornado totalmente globais. Hoje, mesmo os vinhos de topo quase perderam as suas características genuínas. Bordéus, Espanha e Califórnia, quase todas produzem hoje o mesmo perfil de vinhos.

É bem-vindo em Bordéus?
Acho que não! Sou mais ou menos persona non grata entre os bordaleses mais poderosos. Mas há um fenómeno que é muito interessante. Depois do filme e depois do livro, tive muitos vinhateiros da região que vieram ter comigo a agradecer ter tocado na ferida e no que é essencial, que é a veracidade e genuinidade dos vinhos de Bordéus. Pura e simplesmente, antes eles tinham medo de falar. O meio é muito mafioso.

O seu livro denuncia muitas “ligações perigosas” entre críticos, produtores e negociantes.
Que são verdadeiras e demonstráveis. Veja o que se passa com a Revue du Vin de France que, sendo uma das mais influentes de França, tem práticas correntes de corrupção que arrastam leitores e consumidores para a total confusão e perversão. Veja a Decanter, no Reino Unido e compare conteúdo editorial com publicidade e logo vê. Em todo o mundo, as principais revistas estão minadas pela corrupção.

Parker tornou-se um grande especialista de Bordéus mas não da Borgonha. Porquê?
Porque os produtores da Borgonha têm a personalidade de Astérix! Resistir até ao fim! Eles vão sempre resistir ao poder imperial. As opiniões de Parker não contam entre eles. O que pode ser um modelo para o resto do mundo, para os produtores que oferecem ao mercado o seu próprio perfil e os vinhos que reflectem a sua personalidade. Estou muito animado com o fenómeno italiano, que fez com que em 15 anos em quase todas as regiões apresentasse sinais evidentes de resistência à globalização.

Mesmo a Toscana?
Sim, até a Toscana. Eu cresci na Toscana e só agora, que estou a viver no Brasil, estou a tomar contacto com vinhos toscanos fantásticos que eu não conhecia!

Renuncia à ideia de ser um profeta anti-globalização nos vinhos?
Eu não sou profeta de coisa alguma. Eu ganho a minha vida a fazer filmes e é isso que vou continuar a fazer. O que Mondovino (filme) e “Le Goût et le Pouvoir” (livro) representam é a minha análise enquanto observador atento. Eu não faço tenções de continuar a intervir no sector dos vinhos. A minha obra nesse sentido acaba aqui.

Veremos…
Penso que fico por aqui. Eu faço tudo com muita paixão, o que se nota muito no meu trabalho sobre os vinhos e tudo o que o rodeia. São os meus filmes que são aquilo que eu faço.

A propósito, têm aparecido alguns filmes que falam do vinho e que têm ido bastante sucesso. Como os vê? O Sideways, por exemplo.
O caso concreto do Sideways, foi claramente uma operação de marketing. As vendas de Pinot Noir californiano subiram bastante após o filme, o que me parece ter sido a principal intenção. É um problema complexo, o da independência da arte em relação ao capital. O realizador desse filme, Alexander Payne, é um bom profissional e tem no seu passado filmes que eu considero muito. O “Eleição”, por exemplo, é uma crítica muito dura da sociedade americana, cheia de acidez e coragem. Agora, tornou-se num realizador bonzinho e alinhado com o sistema, o que não deixa de me surpreender.

Depois, há o aspecto objectivo que muitos dos filmes que tratam de vinho insistem em mostrar, que é da associação do vinho à sedução…
(gargalhada) É verdade! Mas há outros que vão mostrando aspectos ideológicos bastante mais preocupantes. “Bottleshock”, filme de imenso sucesso nos EUA e que penso não ter chegado ainda à Europa, fala da célebre prova de Paris de 1976 [que opôs França à Califórnia, com a vitória desta última].

Franceses contra americanos, num filme de um americano, é fácil imaginar no que dá!
Publicidade gratuita contra “o francês” patético, chato, tradicional e idiota, enquanto mostra o americano como maravilhoso e aberto ao mundo que conquista o sucesso por mérito próprio! Espelho de uma cultura realmente virada para si própria.

Já agora, por que não ganhou França a prova?
Para começar, eu acho que uma prova cega não tem qualquer valor científico; só tem valor lúdico. Provar um vinho durante 20 segundos e cuspir é como beijar uma miúda para avaliar como seria a minha vida com ela para o resto da vida! É um insulto!

Então é radicalmente contra as provas tal como se fazem hoje em dia?
Elas são, para mim, um grande nada! Você pode avaliar algumas coisas, mas é impossível fazer um juízo correcto do conjunto complexo de coisas que é um vinho. Além disso, um vinho francês dessa altura demora muito mais tempo a amadurecer do que um vinho da Califórnia, por isso onde está a justiça de provar ambas as proveniências com o mesmo tempo de maturação?

No entanto, nos anos 70 a Califórnia estava ainda longe da super-concentração que se conheceu mais tarde.
Sim, mas pôr em prova vinhos franceses com apenas 3 anos de idade é condená-los à partida, sobretudo daquela época! Eu tive a sorte de provar vinhos californianos muito bons, da década de 70. Tal como o cinema americano de então, cheios de defeitos mas cheios de energia e personalidade. É claro que, comparando esses vinhos com os agrestes e crus vinhos franceses da mesma altura, as pessoas os preferiram.

Os vinhos clássicos franceses precisavam de mais de uma década para atingir a maturidade.
Os Meursault Charmes do pai de Jean-Marc Roulot (Borgonha) eram ainda mais ácidos que os do filho, difíceis de apreciar plenamente com menos de 10-15 anos de maturação. É claro que não podiam ser aclamados.

Mas 30 anos depois, os franceses voltaram a perder…
Isso não é inteiramente verdade, até porque alguns produtores não enviaram os seus vinhos para a prova. Jean-Marc Roulot, por exemplo, recusou-se a apresentar os seus vinhos.

São provas importantes, não são?
Nada importantes. Elas fazem parte do negócio do vinho, mas nada têm a ver com a cultura do vinho.

Parece também um processo freudiano, de “matar o pai”.
Sim, nesse sentido os franceses são um pai que merecer ser morto, mas que há que ressuscitar depois, assumido de outra forma!

Porque é França que continua a marcar o ritmo?
Penso que já não. O nova-iorquino consumidor de vinhos, já opta, por exemplo, pelos brancos alemães e austríacos, pela grande complexidade e profundidade que conseguem apresentar. São, num certo sentido, colocados a par com os grandes brancos da Borgonha, com preços muito mais baixos.

Está tudo mais distribuído?
Já não há um país apenas, apesar de França ser o mais importante. Há 25 países onde se estão a fazer vinhos cheios de personalidade, com a marca do seu autor. Sinal mais saudável não há!

Mas agora estamos em plena crise e muitos não vão aguentar.
Ainda agora vim de Paris, onde estive com o chefe Alain Dutournier, do restaurante Carré des Feuillants – para mim, a melhor mesa de Paris, já agora – um dos raros chefes que tem uma grande paixão pelo vinho. Em vez de estar preocupado com a crise, vi-o muito confiante.

A crise também traz oportunidades?
Para ele, esta crise vai fazer desaparecer os que ele chama de David Copperfields da gastronomia, deixando lugar para quem traz alimentação saudável para o ser humano, seja na comida seja no vinho. Eu acho que ele tem razão, apesar de lamentar o sofrimento que isso vai trazer.

A terminar, quais são os vinhos que tem na sua garrafeira?
Eu tenho vinhos de 25 países na minha garrafeira. É uma selecção estritamente pessoal, como deviam ser todas as garrafeiras. Muitos deles são feitos por pessoas que eu conheço e respeito muito, com quem tenho aprendido todos os dias qualquer coisa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Maria de Lourdes Modesto: A grande dama da cozinha portuguesa

(Entrevista feita em Julho de 2008)

Parafraseando Pierre Andrieu, crítico gastronómico francês da primeira metade do séc. XX e colaborador do conceituado Curnonsky, José Quitério chamou-lhe “uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo”, na sua obra “Histórias e Curiosidades Gastronómicas” (Assírio e Alvim, 1992), a propósito da condecoração com que a cidade de Lisboa a distingiu. Maria de Lourdes Modesto é uma referência incontornável da nossa cozinha. Foi pioneira do “live cooking”, nos tempos em que a televisão se fazia totalmente em directo. Escreveu livros que ainda hoje fazem parte do “programa mínimo” de quem se interessa pela cozinha portuguesa. A sua influência continua grande junto de profissionais e consumidores, pela forma carismática como fala e pela clareza do seu discurso, escrito ou falado.
Foram escassos 12 anos, entre 1958 e 1970, aqueles em que pudemos contar com os seus programas televisivos, mas nenhum outro até hoje teve mais sucesso do que o seu. Alentejana de gema e amante da cozinha da sua região, olhou sempre de forma desassombrada para Portugal inteiro tanto na sua unidade como na diversidade gastronómica, nunca se cansando de a proclamar. Já na técnica culinária, tomada no sentido estrito do termo, viu desde cedo em França a excelência necessária para trabalhar seja que cozinha for, incluindo a portuguesa.

Como começou a trabalhar em gastronomia?
Eu gosto de dizer que foi a pouco e pouco que fui começando. Mas tudo começou quando uma equipa da RTP foi ao Liceu Francês em Lisboa, onde eu era professora de trabalhos manuais. Tinha um papel numa peça de Molière e ficaram impressionados comigo, o que os levou a convidar-me para fazer um programa cultural. Disse-lhes que não, mas que podia fazer qualquer coisa virada para as mulheres.

E cozinhou?
De certa forma sim, mas não consigo explicar porquê, que não fosse pela minha simpatia pelos costumes da mesa dos franceses. A intenção era fazer arranjos de flores, mas achei que para um primeiro programa teria piada mostrar por exemplo como cozinhar e comer alcachofras!

E foi um êxito…
Excedeu todas as expectativas. Temos de ver que isto se passa em 1958, quando os atrevimentos e improvisos eram tudo menos bem vindos! Foi logo ali que me disseram que eu não ia fazer o programa previsto mas que ia, sim, passar a cozinhar na televisão. Que foi o que fiz até 1970.

Sempre em directo?
Só gostei dos programas em directo. Quando comecei com os programas gravados, entrei numa enorme depressão. Em directo, eu tinha a noção de estar a falar com as pessoas, ao passo que na forma gravada era tudo muito impessoal, além de que se faziam vários programas em série, como numa indústria. A Filipa Vacondeus chegou a dizer-me que tinha gravado 7 programas no mesmo dia! Eu uma vez gravei três, o que foi uma experiência muito violenta.

Foi assim que conheceu e convidou grandes chefes, gourmets e empresários.
É verdade, passou muita gente pelo meu programa, que animava com o maior gosto. No princípio, os chefes que eu convidava eram quase todos franceses e nas conversas com eles, especialmente fora da emissão, dava-me conta de quão sério era o assunto da cozinha francesa. Se os souflés levavam ou não um pingo; se o coq au vin de uma certa região de França era ou não melhor que o de outra. Percebi que a cozinha francesa era, de facto, um assunto cultural. E interessei-me muito por ele.

Entregou-se então ao estudo da cozinha francesa.
O ambiente era-me favorável a isso. A mulher de um professor do Liceu Francês tinha estudado técnica culinária em França e eu comecei também a estudar. Mais tarde, fui fazer um estágio sobre literatura francesa a Paris, onde aconteceu algo insólito. Conheci muitas pessoas ligadas à cultura e restauração, que me convidavam para várias saídas, supostamente por conselho de portugueses mas que eu não conhecia. Eram, nem mais nem menos pessoas da Fima/Lever, detentora da marca Vaqueiro, para quem passei a trabalhar.

Mais uma estreia profissional?
Sim, que viria a durar muitos anos. Havia na altura duas margarinas concorrentes: a Chefe e a Vaqueiro. A Chefe costumava fazer uma promoção no Natal, em que oferecia a margarina para fazer os bolos para os mais carenciados. Na Vaqueiro, desenvolvemos um livrinho com receitas desenvolvidas por mim que as pessoas podiam trocar contra a apresentação de um certo número de embalagens de margarina. Tinha pratos mais sofisticados, inspirados na cozinha francesa, tais como, por exemplo, linguado com Vinho do Porto. O êxito foi retumbante!

Esses livrinhos fizeram escola, porque houve várias iniciativas semelhantes depois disso.
Nasceu pouco tempo mais tarde a Tele-Culinária, com o Chefe Silva, que acabou por com eles potenciar muito o seu sucesso financeiro. Soube explorar o nicho criado como ninguém. A revista ainda hoje se publica, com tiragens significativas.

Mas também escreveu os seus próprios livros.
Por convite de Fernando Guedes, entrei para a editora Verbo, onde desenvolvi um trabalho muito interessante, tanto de estudo e sistematização da cozinha tradicional portuguesa, como de compilação de receituário tradicional e familiar.

Qual é o seu livro favorito? Cozinha Tradicional Portuguesa?
Eu considero que esse livro não é meu, é de todos nós. É o resultado da colaboração de muitas e notáveis pessoas. Design notável e fotografias fantásticas de Augusto Cabrita, sem esquecer o empenho notável do meu editor. Este livro [pega n’”As Receitas Escolhidas”] sim, é um livro bem feitinho, de que gosto muito. Fácil de utilizar e muito conciso, como eu gosto.



COZINHA PORTUGUESA, O ESTADO ACTUAL


Como vê a cozinha portuguesa e a sua propagação pelo mundo fora?
Eu tenho uma paixão pela cozinha portuguesa, isso é bem conhecido e a minha vida foi-lhe muito dedicada. Mas não sou, de forma alguma, reaccionária. Aceito a modernidade e tenho de aceitar a evolução. Quanto ao facto de ela ser conhecida no exterior, eu penso que a nossa cozinha é muito apreciada em Portugal pelo turista que nos visita. Mas quando chegam as oportunidades de mostrar a cozinha portuguesa, esse desiderato já não se cumpre, o que é pena! Outras cozinhas, são mais feliz nas suas iniciativas.

Alguns chefes portugueses têm feito bastante pelo gosto português
Não é o que eu tenho visto! Não é o gosto português que eu tenho encontrado na maioria das novas criações. É certo que se deu uma revolução gastronómica em Portugal, mas há que aprofundar um pouco mais e estudar mais. Além disso, tem-se abusado do título de “chefe”. Hoje, parece estar ao alcance de qualquer pessoa com alguma experiência de cozinha profissional.

O que define para si um chefe?
Para mim, um chefe é uma pessoa diferenciada, alguém que na cozinha representa a autoridade. Aquilo que eu conheci na cozinha do Hotel Aviz, há várias décadas, foi notável. Só pelo tamanho dos chapéus, sabíamos quem era o chefe, quem era o segundo, o guarde-manger, o pasteleiro, o commis, etc. Hoje em dia, muitas vezes o chefe nem sequer está na cozinha.

Mas não é isso que explica que o gosto não seja português…
Acaba por explicar, pela preocupação com o que os outros estão a fazer e por alguma falta de concentração no seu trabalho. Os ingredientes são trabalhados de uma maneira que não é a nossa, utilizando técnicas que não têm a ver connosco. A cozinha portuguesa tem uma determinada matriz que esse tipo de cozinha não pode ter. Há um grupo de chefes que está a cozinhar para o mundo, com todos os riscos que isso acarreta.

E podemos fazer as coisas bem feitas, evoluindo?
Com certeza! Mesmo com técnicas modernas, podemos continuar a honrar e preservar o gosto português. A cozinha é ela própria resultado de uma evolução. Mas uma evolução que se foi dando gradualmente. Assistimos hoje, de certa forma, a um movimento que parece ter vontade de cortar com o passado. Outras vezes, não passa das intenções. A razão principal, é os novos chefes lerem e cultivar-se pouco.

Qual deve ser o programa mínimo para a formação de um jovem chefe?
O aspirante a chefe deve ler tudo e nunca se deve dar por satisfeito na sua formação teórica e técnica. É fundamental ter umas boas bases. Saber, por exemplo, o que é uma emulsão estável e o que é uma emulsão não estável, com detalhe e rigor, e experimentar muito. Isto em todas as áreas do conhecimento culinário.

Fausto Airoldi tem puxado bastante pelo aspecto da formação dos chefes.
Muito oportuna a referência a Fausto Airoldi, porque ele tem feito uma obra absolutamente notável na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Devo dizer que fiquei abismada quando visitei [Rua de Santana à Lapa 71-C]. Aquilo é que é de facto formação contínua. Não conheço suficientemente a cozinha do Fausto Airoldi para falar sobre ela, mas o que ele fez pelos cozinheiros português já faz dele uma pessoa a quem muito Portugal deve. Eu já fui condecorada e o Fausto ainda não, mas sem dúvida que devia ser!!! Ele é homem de poucas palavras, fala muito pouco, mas faz muito, o que já vai sendo raro em Portugal.

Estamos a valorizar o nosso património gastronómico? A inovar?
De forma geral, acredito que sim, apesar de alguns aspectos que me preocupam muito. Não devemos ter medo da inovação, mas “desestruturações” ou “desconstruções” são caminhos que não correspondem ao que eu gostava de ver acontecer com a nossa cozinha.

O “à Brás” foi promovido por alguns chefes a técnica culinária, vendo-se hoje aplicada a legumes, por exemplo.
Quando se aplica ao Bacalhau à Brás, faz todo o sentido, já que se refere a uma receita. Mas quando se utiliza para designar outras preparações, parece-me errado e sinal de alguma falta de imaginação!

Inovar implica desafiar as regras estabelecidas…
Isso é verdade e é positivo que haja quem esteja a apostar na inovação. O importante é que isso seja feito de forma a recuperar e encontrar o sabor português. Houve uma pessoa que passou cá por Portugal e que conseguiu fazer um trabalho notável nesse sentido, que foi o Joaquim Figueiredo.

A quem muitos se seguiram.
Sim, mas muito poucos tinham a bagagem dele. Escola francesa de alta cozinha, grande preparação técnica e muito talento. Mas, como ele era muito novo e conseguiu fazer o que fez, instalou-se a ideia de que se conseguia facilmente chegar ao nível dele.

A cozinha francesa ainda é matricial?
Eu penso que sim. Um pouco à semelhança da relação que existe entre o alfabeto e a língua, assim se relaciona a cozinha francesa com as cozinhas de todo o mundo. Está na base de todas elas.

Qual é o chefe português de referência, para si?
O Chefe João Ribeiro, do Hotel Aviz, foi a única pessoa a quem eu chamei Mestre. Tinha duas características determinantes: uma grande dedicação à sua profissão e uma extrema humildade. Sendo um homem de enorme talento, estava sempre disposto a aceitar conselhos e indicações da direcção do Hotel Aviz, mesmo quando estava na televisão ao meu lado! Um exemplo humano realmente notável.

Diz-se que a humildade decorre da sabedoria…
É verdade. Mas atenção, sendo ele embora de uma simplicidade ingénua, sabia bem o que queria. Perguntei-lhe uma vez se era verdade que ele comprava os ovos ao Presidente do Conselho, em São Bento, e ele respondeu-me, candidamente: “Olhe que são muito bons”!

Hoje os tempos são outros.
Hoje existe outra forma de formar chefes. Primeiro, vão para a escola hoteleira. Seis meses mais tarde, estão em funções como chefes num restaurante. Outros seis meses decorridos, e já os vemos a dar entrevistas de 4 páginas nas revistas. Vão à televisão. São consultores de muitas pessoas e sítios. Estamos perante um outro fenómeno, bem diferente daquele do tempo do Mestre João Ribeiro.

As profissões no geral estão a atravessar grandes transformações.
Sim, é verdade que o fenómeno que apontei acontece noutras profissões, não é só na dos cozinheiros. Mas em relação a estes, tenho de dizer que não entendo por que os chefes não estão no seu posto de trabalho, no exercício das suas funções. Neste momento, eu só vou a restaurantes caros quando tenho a certeza de que o chefe lá está. Telefono antes, para me certificar disso.


OS CAMINHOS FUTUROS

Como vê a cozinha de autor em Portugal?
Vejo com óptimos olhos e muito optimismo, sobretudo se ultrapassarmos um certo complexo de inferioridade que está instalado nos chefes portugueses. Tive uma experiência que ilustra bem esta perspectiva, quando confessei a um chefe que tinha gostado muito do puré de batata que tinha acabado de comer. Fiquei admirada quando ele me disse que era do Robuchon! Todos sabemos que o puré de batata de Joel Robuchon, em Paris, é fantástico, mas aquele podia ser o dele; o chefe em causa tem talento mais que suficiente para isso.

Como vê o trabalho que os chefes estrangeiros têm feito sobre o receituário português?
Há exemplos muito meritórios, mas geralmente o termo que devíamos utilizar seria mais abuso do que trabalho para descrever o que se tem feito. Eu sou de opinião que quando se vai para um país como o nosso, que tem uma boa cozinha, com boas raízes, não faz sentido corrompê-la!

Mas há excepções, com certeza…
Gostei muito do que aconteceu com o Lapa Palace, no restaurante Cipriani. O chefe Franco Luise fez um bom trabalho, não só em termos de cozinha italiana mas também nas pontes com a nossa cozinha. Deixou um trabalho sólido, que o chefe Giorgio Damasio tem continuado com sensatez e inteligência. Um exemplo de como o respeito pode ser um caminho seguro para fazer um bom trabalho.

Acha que os chefes de primeira linha são consumidores da cozinha que praticam nos seus restaurantes?
Esse é um aspecto interessante. Muitas coisas que os chefes fazem e pensam têm muito a ver com o que eles comem! Numa edição da revista “Saveurs”, em que Ferran Adriá estava a ser entrevistado, a certa altura lê-se que se sentia um cheiro de chocos a grelhar nas brasas e ele, como que por impulso disse “disto é que eu gosto”! David Lopes Ramos entrevistou o chefe Juan Marí Arzak, a quem perguntou se ele comia regularmente os pratos da sua carta. Ele respondeu que não, que do que ele gostava mesmo era de uma boa caldeirada!

Quer isso dizer que advoga um regresso às tradições?
Não, longe disso. Mas gostava de lhes perguntar por que não comem aquilo que fazem e propõem às pessoas. É que muitos chefes fazem grande pesquisa, mas o que eles próprios procuram no seu quotidiano são os seus sabores. Temos de qualquer forma de venerar a grande ciência e técnica que hoje povoa a cozinha vanguardista.

É cliente da cozinha de vanguarda?
Sem dúvida! Vou com mais vontade a restaurantes onde há novidade. Os bons sabores portugueses, felizmente, são servidos todos os dias na minha casa.

Ferran Adriá é um dos grandes vanguardistas da actualidade mas já confessou que tem saudades de cozinhar cataplanas…
Já me disseram que ele tinha dito isso. Eu tenho muito respeito por ele, ele pratica uma cozinha de altíssimo nível, de grande apuro técnico. Ele próprio avisa num livro dele que os pratos são de muito difícil preparação e que não é possível reproduzi-los em casa. Portanto, só ele consegue executar a sua cozinha. Mas isso não tira que Espanha lhe deva muito, pelo que ele fez pela cozinha do seu país.

Houve um movimento colectivo em Espanha que podia servir de exemplo para nós.
Espanha puxa toda para cima, enquanto em Portugal muitas vezes se opta por que vá tudo abaixo, para evitar promover alguém em particular. Isso não é justo, porque cinco ou seis grandes chefes podem ajudar a promover o trabalho de milhares!

Acha que o cliente médio de restaurantes conhece bem a cozinha e os produtos portugueses?
Está aí também um aspecto relevante, porque eu acho que o cliente médio português sabe pouco e facilmente corta com a tradição e com o passado. Por exemplo, agora inventou-se a história e a moda do “queijo líquido”, tão amanteigado que a casca se converte num recipiente para o creme, que passa a tirar-se com uma colher. Eu hoje mando para trás, mas tenho sido bastante criticada por isso; as pessoas gostam!

Não podemos terminar a entrevista sem ouvir a sua opinião sobre a cozinha molecular.
Neste momento, noto alguma confusão nos consumidores. Há um problema de conceito. Hervé This inventou o termo “gastronomia molecular”, o que levou muitas pessoas a pensar que se trata de um novo tipo de comida. Vejo pessoas a experimentar, com a expectativa errada.

Há resultados interessantes.
Muito interessantes. A primeira coisa engraçada e útil que Hervé This fez foi desmistificar muitas das crenças que povoavam a cozinha. Deu-lhe um sentido mais científico e menos supersticioso, o que é muito bom. Os trabalhos que desenvolveu são estruturantes e permitem, de facto, explorar zonas menos conhecidas. Em Portugal, as professoras Margarida Guerreiro e Paulina Mata, juntamente com as suas equipas, têm desenvolvido um trabalho notável, que pode potenciar as valências dos nossos chefes.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

As Sete Maravilhas de Gastronomia

Está claro e demonstrado o défice cultural de que padece o povo português no tocante aos valores da sua gastronomia.

A "maravilha" para mim foi terem conseguido deixar o Algarve de fora; como é possível? Logo a seguir, as quatro mais aviltadas iguarias de Portugal, que não se comem em condições em parte alguma acessível ao grande público, que são a Alheira de Mirandela, o Caldo Verde, o Queijo Serra da Estrela e o Leitão da Bairrada. Finalmente, o Pastel de Belém, que pressurosas almas deram a registar como DOP sem saber do que falavam. Agora, acabou-se a luta pelo genuíno pastel de nata.

O resto... pronto, tá bem. Arroz de Marisco e Sardinha Assada. Mas o primeiro, dizem que é da Marinha Grande, a segunda de Setúbal. Valha-nos Deus.

Mas, como disse há muitos anos Mário Soares, isto é Portugal, não é Moscovo!...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Nós e o Japão. uma vez mais

Temos de perder o preconceito em relação à aparelhagem de mesa!

Os japoneses não são como nós, mas também não são assim tão diferentes. Especialmente os que são dados a estar em casa e, como eu, acham que é em nossa casa que se come melhor; onde nos sabem bem os grandes vinhos; onde podemos passar 4 inefáveis horas com amigos e família; onde o nosso coração bate com calor sem preconceitos; onde fazemos tudo à nossa maneira. Queria fazer aqui uma pequena reflexão acerca dos costumes da mesa, sobretudo louça e recipientes de serviço. É que me parece que mesmo os que têm baixela secular herdada dos antepassados, assim como os obstinados em ter um “serviço” mais ou menos elegante, perdem muito por não fazer uma festa na mesa. É curioso que nem os restaurantes japoneses em Portugal nos mostram a atmosfera de esplendor de serviço e festa de uma casa de família japonesa. Eu gostava que a nossa atitude mudasse.
Em primeiro lugar, os materiais. A nossa fixação na porcelana não tem explicação, quando a nossa história culinária é indissociável dos barros preto, branco e vermelho, com as respectivas decorações típicas de cada região. A mesa japonesa tradicional baseia-se muito na cerâmica, a porcelana raramente é utilizada. Depois, há uma profusão de dimensões, profundidades e estilos. Quanto a materiais, a balsa, a pedra, o metal, madeira lacada, madeira envernizada, com cores que só na alma se encontram, vão-nos passando pela frente. E o vidro, às vezes feito pequeno vitral de moções e emoções, para mostrar o colorido de um tobiko (ovas de peixe voador), ou a textura de uma salada fria.
Em segundo lugar, a decoração da louça. No ritual do chá, o convidado começa sempre por apreciar a decoração da chávena ou copo de cerâmica e, aprovando com um sorriso, estende-a para ser servido. A opção zen está presente em tudo o que leva comida, condimentos ou bebidas. Ou seja, há um sentido recentrador em si próprio que mesmo na sala mais ruidosa evoca o silêncio. O único e obrigatório, sempre que se come com respeito e enquanto acto cultural. O jogo de vidrados, as figurações desenhadas à maneira de histórias antigas como se fossem contos para adormecer uma criança, vão direitas ao coração. É evidente que a comida sabe melhor. Assim como é evidente que só serve a sua comida neste tipo de recipientes quem eleva a cozinha ao supremo espiritual.
Em terceiro e por último, os tamanhos e as formas. Poucas arestas, formas irregulares e alguma confusão de estilos podem podem baralhar quem não percebe do que se trata, mas isso é um erro. Afinal, somos todos diferentes, os que estamos a uma mesma mesa. É o exercício do “me mim”, em vez de “a mim”. Pode ser um exercício do Belo, como o definiu Hegel.
Eu acho que a forma como comemos já mudou muito, ao longo dos últimos 30 anos. Radicalmente, diria. Como bebemos, então, nem se fala. Fica aqui uma proposta de secessão para a comunidade. Vamos baralhar e voltar a dar. Visitem feiras de rua, antiquários, ou até mesmo lojas baratas. E comprem UM prato. UM copo. UMA travessa. Depois, em casa, ponham a mesa com o coração. Todos os dias. E cozinhem para aqueles que amam. E digam-lhes que os amam. E se forem servidos assim, deixem que lhes digam que vos amam. Quando se for a ver, foi a mesa o lugar da vontade, do querer ser melhor, da excelência. Em casa, baixinho. Em segredo. Obrigado.