terça-feira, 30 de julho de 2013

Ai deseja?

Abusa-se do verbo "desejar" nos restaurantes, não acham?

Lembro-me de ler um texto de Agostinho da Silva sobre o desejo, era ele bem vivo e animava tertúlias, nalgumas das quais tive a felicidade de participar. Era muito melhor a escrever do que a falar, a sua expressão corporal e o tom de voz com que exprimia o seu pensamento davam-me uma espécie de urticária. O texto sobre o desejo era profundo, ritmado e sentia-se-lhe o silêncio quando se lia. Belo, portanto, acima de toda a suspeita, com a advertência especial de que o nosso desejo sobre alguém ou alguma coisa tinha sempre o efeito imediato de limitar o objecto do desejo. Admito que o desejo, dito como palavra solta, prefigure para a maioria alguma espécie de moção sexual, mas realmente é pena cingir a palavra a um significado tão mesquinho. O pensador português desaparecido em 1996 falava e escrevia muito sobre o desejo de liberdade, por exemplo, como um dos mais emancipadores e fundadores na relação com o outro. Que o nosso desejo próprio de liberdade é maior do que o desejo de conceder liberdade àqueles que mantemos prisioneiros dos nossos sentimentos. Isto, digo eu agora, para não falar dos que sentem desejo de ser prisioneiros de alguém. Aquilo que quero não é necessariamente o que eu desejo.
Acontece-me muito o assunto do desejo vir à baila nas minhas conversas forçadas com os empregados de mesa de um restaurante mais selecto. As invectivas do tipo “deseja pão?” ou “deseja mais um pouco de água?”, além de me darem quase a mesma urticária que Agostinho da Silva me dava quando falava em vez de escrever, levam sistematicamente a mesma resposta: “desejar, desejar, não, mas quero!” Reconheço que levo as palavras demasiado a sério, e que o empregado está só a querer ser respeitador e polido. Mas também os há que nos descrevem um prato como se fôssemos atrasados mentais, apontando ainda por cima para cada ingrediente com o dedo mindinho esticado, feito ponteiro. E se há coisa que a mesa de um restaurante deve consagrar é o bem-estar de cada cliente, cabendo ao pessoal de sala o alívio de todo e qualquer constrangimento provocado pelo serviço. Apesar de indefeso e limitado ao espaço físico de uma cadeira, tenho os meus direitos. E se todo o empregado sabe que não se deve meter nas conversas que decorrem à mesa, também deveria saber que pão e água não são coisa que se deseje. Por outro lado, se ele me perguntasse “quer pão?” ou, pior, “que pão é que quer?”, eu acho que ficaria ainda mais ofendido, pela forma intimidativa de me fazer uma pergunta. Foi a propósito disto que outro dia tive uma autêntica epifania, fazendo-me recordar a discussão do desejo em Agostinho da Silva.
Parece-me que quando nos sentamos à mesa, não nos importamos de ser dominados e, de certa forma, até esperamos sê-lo. O nosso desejo de liberdade mantém-se, mas de certa forma penhoramos parte dela a favor daquilo a que chamamos serviço de sala. Pressupõe, entre outros, que quem nos serve deseje a nossa liberdade, o nosso bem-estar. Entre as dominações por nós admitidas poderia estar, por exemplo, “temos pão de centeio, cerveja e azeitonas, além da nossa baguete”, que nós logo perceberíamos que a ideia era escolher nquele instante, mesmo que não nos apetecesse. Há muitas formas de exercer o poder sem agredir.

Outros desejos

Apesar da pequena urticária provocada pela hipersensibilidade aos comentários e verbalizações dos empregados, o que eu desejo mesmo é que os nossos restaurantes consigam manter-se abertos e com saúde financeira. Há três factores que me apavoram no cenário actual. Primeiro, a perda geral de clientes que se verificou desde o início do ano, por uma espécie de pânico instalado entre os particulares, debandando dos restaurantes pela perda súbita de poder de compra. Segundo, o aumento significativo de custos fixos imputados aos restaurantes. Terceiro, o ritmo de encerramento de casas que aumenta a cada dia que passa, gerando uma onda grande de despedimentos na restauração. A carga está mesmo a ficar pesada. Vamos ver o que acontece em Setembro, na rentré. Confiemos na endurance e espírito combativo dos empresários, principalmente os cozinheiros-empresários, que normalmente não têm backup financeiro para suportar muitos dias seguidos com pouco trabalho. Além de ser os nossos bravos, são também os nossos talentos, que não queremos perder nem ver em situações limite, se é que não estão já. Tentemos visitá-los, mesmo que optemos pelas suas soluções mais económicas, caso dos “menus executivos”. A resistência à crise passa também pela atitude psicológica certa e positiva. Um cozinheiro terá sempre mais auto-confiança com uma sala cheia do que com duas ou três mesas de clientes. Desejo força e vontade a todos os que estão neste momento na frente da batalha e que isto passe depressa. Não só desejo mas quero.

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