quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Ontem sonhei que amanhã nos descobriam

Se fosse puxar por uma ponta que não a da história ou das estórias é que era bom. Dizem que a chave está dentro de nós e que nos cabe a nós aprender a mostrar. Era bom, era óptimo, que mesmo assim alguém olhasse para a nossa história, ingredientes, etc. Nalgum momento, a nossa cozinha vai ter de se explicar.

Talvez por ultimamente ter sido forçado a olhar de forma mais analítica para o que se está a passar nas mesas dos nossos restaurantes, coloco-me na posição de alguém que se esteja a sentar pela primeira vez num restaurante português. E então assolam-me perplexidades inevitáveis. Sempre gostei de imaginar estar sentado à mesa com pessoas com quem me identifico e admiro e já registei ao vivo notas inesquecíveis, todas decorrentes de eu não olhar suficientemente para nós. Fiz há uns anos um programa de televisão de uma hora para a televisão chilena que começou com a ideia fixa de o bacalhau ser o peixe mais importante para os portugueses mas que depois entrou numa zona interessante de descoberta do enorme património de mar que nós chamamos para a nossa mesa. Penso que foi aí que me apercebi verdadeiramente do que temos para revelar a quem se interesse por nós. E também do que temos de explicar.
Colocamos muitas vezes no couvert queijos ditos de pasta mole, feitos a partir de leite de ovelha, em si mesmo uma raridade europeia, senão mundial. Serra da Estrela e Azeitão lideram a oferta entradeira nos restaurantes lisboetas. É certo que é no início da refeição que estamos com mais força e que, por isso, podemos digerir melhor o que nos é servido, mas é uma descarga brutal de colesterol e matéria gorda que põe o fígado a trabalhar e a telefonar para os amigos a pedir ajuda. E vamos conversando, alegremente, muitas vezes com um copito já servido, de espumante ou vinho branco. Ao lado do "queijinho" pode estar um "pratinho" de presunto de bolota, bem saboroso, de boa origem e cura. Nunca vai para trás sem ser vazio, o dito pratinho, às vezes até pedimos um reforçozito da bomba. E no entanto, que bem nos sabe! Já agora, uns peixinhos da horta, que é coisa ligeira, "é só feijão verde", dizem, portanto ligeirinho. O polme que o envolve e depois a fritura é que lhe aumentam a força depois e lá se vão os princípios. A propósito, parece que afinal os tempuras da cozinha japonesa nada têm a ver com os nossos peixinhos da horta, mas isso fica para outra altura. Ainda temos as pataniscas de bacalhau para nos alegrar e preparar para a refeição (!!!). Ah, pois, estamos a preparar-nos para comer. Olhe fachavor! Podia trazer pão? Pãozinho, pois então, e aqui encantamos todos os que nos visitam, o nosso peixe é um activo seguro mas o nosso pão é fabuloso, tanto em genuinidade como em diversidade. E venha de lá uma tacinha de azeite, com um vinagre como se diz? balsâmico! sim, balsâmico, para molharmos um bocadinho de pão de cada vez, juntamente com os dedos, enquanto vamos falando da crise. E vai um ou dois pastéis de bacalhau? Vai pois! delícia da nossa cozinha, só nossa. E em vez da via da fritura, podíamos ter optado pela cascaria e debulhe marisqueiro. Quem não fica interessante a comer percebes? São fresquinhos, rasgam-se com os dentes e puxa-se o corpo cá para fora, depois os mais especialistas abrem as unhas com as unhas dos polegares e comem os cílios, de sabor maravilhoso. Além de que conseguimos manter-nos concentrados e bem dispostos enquanto vamos chupando as cabeças dos camarões. E se gosto disto... como gosto! Dou-me conta nesta altura de como, sendo acessório, é importante um vinho para congregar tudo isto a caminho da tortura da digestão. Um branco sem madeira, levezinho porque não queremos coisas pesadas! Desculpem se pareço carregar na nota do peso do nosso capítulo entradeiro, não é mesmo minha intenção, o que quero é mostrar o confuso que pode ficar um chefe de escola ao ver-nos fazer uma refeição. E também trazer aqui a dificuldade de muitos entenderem as opções feitas por Aimé Barroyer nos seus pratos inspirados nos sabores portugueses. Confessou-me uma vez o seu espanto perante o que os portugueses gostam de comer à laia de entrada, e depois, em vez de pedir um café e a conta, começam a refeição propriamente dita. Salmonete de Setúbal com guisadinho de caracóis e lascas de presunto, por exemplo, era frequente nas suas ementas. O conceito por detrás desse e e de outros pratos brilhantes que criou para nós, tinha na verdade a ver com o que para os portugueses é admissível numa mesma refeição. Achei extraordinário que ele tivesse conseguido ver isso com clareza. E o seu fascínio pela massa de pastel de bacalhau, que declinou de várias formas. Formava a bola com a dita, às vezes impregnando-a de um tempero especial, depois espetava-lhe massa fina cortada e levava-a a fritar. Criou o "ouriço de massa de pastel de bacalhau" assim, que harmonizava depois com uma proteína, a mais brilhante das quais talvez fosse os percebes. Genial. E vejam se não reúne algumas das petisquices atrás descritas. Tenho pena que tivesse sido sempre necessário Aimé explicar-se. O mínimo sentido de autocrítica ter-nos-ia conduzido facilmente ao reconhecimento do seu génio. Mas isso, como a tempura e os peixinhos da horta, é para outra conversa.
Prosseguimos na nossa refeição. Vem um peixinho grelhado, com legumes e batatas cozidas. Dizemos ao empregado: não ponha batatas, estou de dieta. Delícia.

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