segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A cozinha alentejana e os romanos

Não lhe assentam bem as etiquetas e nunca na história foi consensual. A cozinha alentejana é um dos raros exemplos em que os senhores poderosos e caçadores se deixaram seduzir e guiar pela cozinha dos camponeses. Sempre que pensamos de novo nela reconhecemos-lhe novas virtudes.

Entenderam a história e os homens fixar aproximadamente a mesma data para o início formal do império romano, entre 25 e 40 a.C., e o nascimento de Jesus Cristo. A hegemonia dos romanos era então o assunto mais importante de todos, havia que a todos subordinar. A relação com os gregos era, numa perspectiva estritamente histórica, de agradecimento, e noutra, de cariz cultural, de legado. As casas nobres dos romanos utilizam, de resto as proporções, materiais e traça da arquitectura grega. Os mesmos que a pessoa comum conota com gente desregrada, dada a excessos e às históricas festas de muitos dias sem eira nem beira, eram cultores incondicionais e fervorosos da pureza. Os romanos ainda hoje são a cultura e modelo social sensível. Os produtos frescos. As ervas aromáticas. Os frutos. O peixe vivo. A capoeira. Tudo aparentemente evoluiu a partir deles, e tudo parece ter ainda hoje a sua marca. O cruzamento que mais tarde aparece marca toda a península ibérica e, entre nós o Alentejo, de forma indelével. O Norte da Europa e as grandes cidades adoptaram um modelo estratificado, em termos sociais, e estabeleceram os poderes temporais e intemporais, com os monarcas geralmente absolutos mas a subjugar os seus países a determinada igreja, mas ligeiramente acima desta. O Acordo de Vestefália enunciará mesmo "um rei, uma religião" como princípio liminar. Curiosamente, é esse mesmo princípio que leva a que as diversas Inquisições, confundidas pelos historiadores modernos como obra directa da igreja católica, fossem tribunais régios, com a assistência de frades e membros da hierarquia. Nada mais falso. A inquisição luterana provocou autênticas chacinas e foi bem mais tenebrosa do que a católica. O negócio da salvação, entendido como a ascese e praxis forçadas pela religião para conseguir alcançar a vida eterna, entendeu, independentemente do credo, sobretudo privar as pessoas dos seus alimentos. A cozinha alentejana, que bebe ainda directamente dos tempos dos romanos e do Al Andaluz, significa hoje, a um tempo o lugar de primazia dado incondicionalmente ao ser humano, acima de toda a convenção ou religião; e forma genial de fintar a lei e os chamados dias de guarda. No séc. XIV, eram em Portugal mais de 200 dias por ano, em que não se podia comer carne nem peixe.

Fenícios, gregos e egípcios
O vinho, inventado pelos gregos, e as vinhas, que mais tarde os romanos iriam "exportar" para a China, em troca das especiarias e outros produtos, montados em longas cadeias de animais através de mais de 3 mil quilómetros, ainda hoje marca a "mesa". O lugar de vinha mais antigo da China tem hoje cerca de 2 mil anos, pelo que as coisas batem certo. Neste aspecto do vinho, contudo, há um pormenor a ressalvar, poucas vezes referido e consequentemente ultrapassado, em tantas produções cinematográficas de orçamento milinionário. Sempre que vemos beber vinho tinto, estamos perante uma incorrecção histórica. No tempo de Apício - Caius Apicius, o primeiro grande chef de cozinha da história e autor do primeiro tratado de cozinha, no séc. I d.C. - não havia vinho tinto. Fazia-se o vinho no modo que hoje se conhece como "bica aberta". As películas, em vez de macerar e dar cor ao vinho, deixavam-se secar, para se guardar nas despensas e utilizar para comer assim, soltas, ou integradas nos pratos ou sobremesas. É que nesse tempo não havia açúcar!
O pão tinha extrema importância no tempo dos romanos, o que nunca desapareceu da Europa. É preciso atentar no facto de que na idade média, se o consumo diário de vinho por pessoa era entre 1,5 e 3 litros por dia, o de pão era em média de um quilo e meio! Sopa significava, estritamente, um bocado de pão sobre o qual depois se derramava um caldo, normalmente produzido a partir de cardos, urtigas, beldroegas ou outras ervas. A massa do pão, por sua vez, era feita colectivamente, partindo-se da massa velha, deixada dois dias ou mais antes, e integrada em massa nova. A maturidade e longevidade do pão alentejano tem aqui a sua raiz. As açordas alentejanas seguem-lhe o passo, 
Finalmente, o azeite. Para o nosso fio histórico, podemos fixá-lo também na autoria grega e impulsionamento romano. Há contudo que o completar com o trabalho notável dos fenícios através de todo o mar mediterrâneo, difundindo o cultivo da oliveira. Acresce a este fenómeno a relação de proximidade e reciprocidade de produtos que se estabeleceu entre a Grécia e o Egipto no tempo dos romanos. A relação entre os poderosos Cleópatra e Júlio César não é só dos livros do Astérix; é real. E na verdade foi dali que nos vieram a elevação de algumas vísceras a produto de alto gabarito, caso por exemplo do foie gras; a entrada dos citrinos na Europa, vindos do oriente; e toda uma noção arquetipal de construção orientada para o espírito, presente tanto nas pirâmides quanto nas catedrais góticas, de que conhecemos exactamente o tempo. Duas histórias paralelas de procura de elevação e salvação, dois caminhos radicalmente diferentes para chegar à realização. Ao mesmo tempo, percebemos como simplificamos demasiado quando falamos de "dieta mediterrânica", para mais assumida como tendo por base "vinho, azeite e pão". Há que repescar mais atrás e a equação não se resolve sem o estudo aturado do tempo e da mesa dos romanos.

O que nos toca a nós do Alentejo
O espaço aqui disponível não permite ir mais além do que o apontar de pistas e na verdade precisa de intervenientes e actores que lhe estudem a matriz ancestral. Quando se entender verdadeira e completamente esse trabalho da história e do homem, perceberemos, como é evidente, tudo doutra forma. Em jeito de registo de perplexidades, propomos aqui alguns pontos cruciais da cozinha alentejana, mais não querendo que suscitar o debate.

Banha e azeite. A utilização da banha de porco como fundo de sopas, refogados e frituras é identitária na cozinha alentejana. O azeite é hoje mais utilizado, mas têm ambos lugar na cozinha, na devida proporção. 
Vinho e vinagre. Pelo exposto no texto, não espanta que o vinagre seja normalmente de vinho branco, assim como o vinho propriamente dito utilizado para cozinhar.
As ervas aromáticas. O que mexia pertencia aos senhores, o que permanecia na terra ou dela brotava, ficava para o povo. Grande tesouro saiu deste princípio básico, supostamente penalizante.
O piso e o almofariz. A mistura de ervas, alho, vinagre, azeite e vinho passa normalmente pelo almofariz. É um gesto evanescente dos hábitos berberes (Marrocos), pertencendo ao património do Al Andaluz. A noção de "piso" é fundamental para o entender devidamente.
Caldos e ensopados. Dos fundos já falámos atrás, agora há lado ritual e sacrifical destes preparados, para entender e estudar. Como por exemplo o hábito de comer sentado no chão o ensopado de borrego na segunda-feira a seguir à Páscoa, levado no tarro.
As marinadas, secas ou molhadas. Desde a preparação de dois ou três dias dos pézinhos de porco à carne em massa de pimentão, passando pela cabeça de xara, desossada, cozida e prensada, são inúmeros os processamentos ancestrais que urge entender.
Pão, açordas e migas. É uma das transformações mais sublimes de de todo o receituário português. No Alentejo, faz-se as açordas no pingue, ou pingo das carnes, como forma de as ligar ou temperar. As açordas são normalmente caldos feitos a partir do piso de alho e coentros ou poejo, onde se coloca cação, pescada ou cogumelos.

Todas as regiões têm as suas riquezas, é certo. Mas só o Alentejo vive e obriga a este vôo bem rasante do que a terra dá.

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