segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Bacalhau perfeito, existirá?

É mais ou menos nesta altura do ano que os fiéis do bacalhau começam a mexer-se nas cadeiras enquanto fingem concentrar-se no trabalho. Venceu-se o calor, as festas natalícias estão à porta e é imperativo o abastecimento.

O assunto do bacalhau consome os nervos a cada vez menos gente, tais são as supostas facilidades postas à disposição pelas grandes superfícies e o cúmulo do produto congelado vendido em modernas e por vezes cómicas embalagens. Parece que agora se está a vender bacalhau sem pele nem espinhas, demolhado e ultracongelado, espécie de 4 em 1, para facilitar a vida em casa. Nalguns casos, lê-se a recomendação "para os mais novos", quando não mesmo "para bebés". Sabemos como as coisas andam e o pouquíssimo tempo que no geral dedicamos a comprar bom produto para levar para casa e alimentar devidamente os nossos; qualquer oferta ou campanha que explore a "culpa" que carregamos e queremos a todo o custo expiar funciona com eficácia máxima. Ou seja, pagamos sem pensar nem olhar a preços, desde que obtenhamos essa espécie de redenção instantânea. Norge, Dias, Pascoal e Riberalves, contudo, são marcas fiáveis, merecendo pelo menos a experiência.

Comprar bem
Há coisas que começam mesmo pelo princípio. E como somos todos de bons princípios, descartemos, pelo menos desta vez, a totalidade das variantes congeladas. Quem for dado a contas e paciência, verá rapidamente que é no bacalhau seco que está o que nos interessa. A secagem é um sistema lento, que consiste, como o nome diz, em retirar a água presente no peixe após a pesca. Tal processo deve, contudo ser exaustivo e definitivo, para que o peixe atinja de facto a condição de conserva. O local deve ser seco, bem seco, sem alterações de humidade. Portanto, primeiríssima regra: ver se no instante da compra ele está de facto seco. A melhor forma de o fazer é pegar no peixe inteiro pelo rabo, um pouco acima, e ver se ele emprancha - secagem bem feita - ou verga - demasiada água ainda presenta. Fico muito decepcionado com a maioria dos hipermercados, porque mesmo nas bitolas mais pequenas os bacalhaus não ficam direitos. Por falar em bitolas, as principais são, como é sabido, miúdo (menos de 500g); corrente (500g a 1kg); crescido (1 a 1,4kg); crescido+ (1,5 a 2kg); graúdo (2,1kg a 3kg); especial (3,1 a 4kg); e especial jumbo (mais de 4kg). Em Lisboa, na Rua do Arsenal e no Porto, na zona do Bolhão encontra-se bom bacalhau seco, armazenado em óptimas condições e onde só pagamos o bacalhau propriamente dito, em vez de água e sal que lhe podem acrescer até 20% em peso líquido quando vamos a lugares menos recomendáveis. Na nossa mercearia de confiança, em princípio também nos vão dar bom produto. Se mesmo assim optarmos por comprar em hipermercado, há que conferir a espécie na etiqueta. Deve ser "gadus morhua". O bacalhau do pacífico, ou "gadus macrocephalus" também se encontra aí, mas não é a mesma coisa; o preço tem de ser significativamente mais baixo do que o morhua. A variante tradicional, dita de "cura amarela", assim chamada por a secagem ocorrer ao sol, dando-lhe uma tonalidade acastanhada, já é difícil de encontrar, seja onde for, e os dedos de uma mão chegam para enumerar os produtores que ainda se dedicam a este tipo de processamento. Certo é que vale a pena, tanto pelo teor inferior de sal como pela definição acrescida das lascas após a demolha. Defenda-se de designações que não tiram nem põem, em termos de qualidade, mas pelas quais lhe levam bastante dinheiro. "Asa branca", por exemplo, é vendido como se de uma espécie fabulosa se tratasse, quando difere do normal apenas na pele posterior da guelra que é retirada. O preço, contudo, é cerca de 15% superior!
Não leve o bacalhau inteiro para casa, a cozinha fica um caos e da loja até casa vai semear um longo rasto de inimizades, além de deixar um inesquecível cheiro no carro. Em vez disso, peça para lho cortarem na loja no acto da compra. Quando o fizer, contudo, tenha em conta o fim a que se destina. Se não sabe ainda, corte a meio de cima a baixo, depois de aparar em cima (quando se trata de macrocephalus normalmente já está aparada, tal como a cauda, mais um sinal a reter) e nas abas. Extrai-se então os seis ou quatro meios lombos - dependendo da bitola -, o rabo os restos. São fabulosos para fazer um caldo para arroz, sopa ou açorda, além de que permitem dispensar a utilização de sal em pratos de tacho. Se gosta dos lombos cortados de lés a lés, é livre de o fazer, não se esqueça é de que depois, em casa, vai ter de os demolhar, e nem sempre existem os recipientes suficientemente grandes para o conseguir.

Tratar melhor
O momento de demolhar o bacalhau tem contornos de drama na maioria dos lares, mas não há razão para ser assim. Na verdade, basta o senso comum para fazer tudo certo. Em primeiro lugar, a temperatura. O bacalhau anda lá pelas funduras, muitas vezes a mais de 200 metros de profundidade, e sobe em cardume numeroso para satisfazer a sua incrível gula por peixes pequenos e crustáceos. Quer isto dizer que vive a temperaturas entre os dois graus negativos e os 3 positivos. É curial, por isso, que a demolha seja sempre feita na parte de baixo do frigorífico. Digo isto quando sei que maioria utiliza a bancada da cozinha durante dois dias para este fim, a temperaturas inconstitucionais. Pois fiquem sabendo que em vez de regenerar o peixe, estão a estragá-lo, pois acima de 10 graus centígrados começa a decomposição. Cheira a podre na cozinha? Sim, claro, está lá peixe a apodrecer! Frigorífico sempre, portanto, pele voltada para cima, nunca sobrepondo as postas, senão o sal que se liberta da pele de uma vai impregnar-se na carne da outra.
O tempo de demolha depende francamente do nosso gosto, mas digamos que mudar a água de 8 em 8 horas, ao longo de um dia e meio, deve ser suficiente para fazer um bom trabalho. Se demolhamos em excesso também tiramos virtude ao peixe, é bom ter em mente que o sal, a goma e os nutrientes originais do bacalhau é que fazem dele peça única. Algumas receitas, como do Gomes de Sá - famoso negociante de bacalhau do Porto - pedem que metade da demolha se faça em leite. Aliás, damos pela presença do leite em muitas receitas clássicas de bacalhau. Hoje contudo, não faz muito sentido, uma vez que os leites disponíveis no mercado são homogeneizados e grande parte da gordura é retirada. O banho de beleza em leitinho do feioso peixe seco visava, à maneira de spa, a sua hidratação, impregnando a gordura na carne do bacalhau. Ficava depois mais resistente a eventuais cozeduras, assaduras e frituras. O bacalhau adora mergulhar em azeite a 90 graus, sem chegar a ferver, assim como as batatinhas suas assessoras depois na mesa. Mas abomina o calor extremo por exemplo de uma água a ferver em cachão! Não tem sentido, de resto, estarmos dois dias a regenerar o peixe para depois lhe esmifrar a totalidade dos sucos, reduzindo-o a lascas secas e sensaboronas. Sempre todo o cuidado com isto, portanto. Agora sim, apetece cozinhar!

O silêncio fecundo

As condições de extrema tensão em que os cozinheiros trabalham neste momento fazem-me admirá-los mais que nunca. E sei que apesar da crise, todas as adversidades serão superadas. Transportam dentro um segredo inviolável, que é o seu silêncio.

Sobre o acto de escrever escreveu Agustina Bessa-Luís "Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas", na sua "Contemplação carinhosa da angústia" (Guimarães Editores, 2000). Atrai-me a ideia da criação como coisa estritamente individual, e ainda mais a renúncia que sugere a toda e qualquer perturbação da relação entre criador e coisa criada. Escrever exige, tal como o exercício das outras artes, como que uma entrega total e duradoura. Total, porque as faculdades são integralmente canalizadas para o processo; duradoura, porque não é instantâneo, a temporada de convívio com a peça inacabada pode tardar anos, como sabemos. É preciso o amor evocado por Agustina para que a obra veja finalmente a luz do dia. A literatura, música, escultura, pintura, etc., exigem uma vida inteira de preparação, e depois uma outra de total dedicação. E quando uma obra está terminada, transfere-se a angústia para a obra seguinte, e o ciclo recomeça.
A cozinha tem muito de amor e dedicação, também. O cozinheiro culto é um ser inquieto e desinstalado, com uma força indefectível a avassaladora dentro, que desemboca na necessidade absoluta de criar. E tem uma agravante: o trabalho nunca está completo. As criações sobrepõem-se e alternadamente tiram o sono ao cozinheiro que lhes é dedicado, pedindo ajustes aqui e ali. Curiosamente, pelo que me tem sido dado a ver, é na turbulência dos dias andados - que nas cozinhas são garantidamente pouco monótonos - que surgem as primeiras luzes, mas depois é na reclusão e na quietude que o desenvolvimento se dá. No silêncio de Agustina. Pode vir daí a longa fiada de escritores que são também dados à cozinha e que desenvolveram relações de profunda cumplicidade com os cozinheiros, ao longo da história. A relação é benéfica para ambos porque os obriga a crescer; a sair da que hoje carinhosamente chamamos zona de conforto. O cozinheiro que faz o seu trabalho de forma madura procura cultivar-se e se a cultura estiver instalada na sua sala, através de pessoas intelectualmente orientadas, é inevitável que se dê o prodígio do crescimento. Depois e finalmente, o silêncio. É nesse reduto que se despertam as coisas criadas que sugere Agustina, sabendo que não há nada que seja inteiramente novo à nossa espera. Antes, fomenta-se a perplexidade perante um léxico que se domina cada vez maior. Um pouco como a partir de uma sopa de letras vislumbrar novas declinações. Cozinhar parece ser, a um tempo, inovar sem fazer nada de novo e todos os dias voltar a fazer. Coisas que talvez só um artista compreenda.
O mito da receita e da ficha técnica dilui-se no fenómeno incrível que é cozinheiros lado a lado utilizarem a mesma receita e o resultado final ser totalmente diferente. A regra vale tanto para a alta cozinha, com muitos passos intermédios e tratamentos individualizados de ingredientes, até ao mais simples prato de província. No próximo dia 13 de Dezembro, festa de Santa Luzia, há mais uma Feira de Capões e mais um concurso, com uma só receita, que é a do Capão à Freamunde e que merece conferência no local, pela espantosa diversidade que apresenta. Uma receita apenas gera um impacte enorme na restauração local e demonstra a diversidade de um produto único, o Capão de Freamunde, que tem já honras de Indicação Geográfica (IG), mas ainda não se vende depenado e embalado como os capões espanhóis que, acidentalmente, nem sequer são capões. Há que ligar para a Associação dos Criadores de Capão de Freamunde (tel. 255 870 066) ou comprar a segunda edição do Guia da Qualifica, que acaba de sair. Já agora, é impossível não reparar na diversidade acrescida que Ana Soeiro e a sua equipa alinharam para esta edição. Além dos proverbiais enchidos, há queijos, carnes, frutos, azeites doçaria e muito mais, criando a montra excelente de produtos que sabemos existir no nosso país. Parabéns pelo feito! Sem bons produtos não há bons cozinheiros e sem um código inteligível e exportável, de nada nos serve ter bons produtos. Gosto deste corpus crescente de coisas da nossa terra que vamos tendo. Significa muito trabalho, burocracia e Bruxelas, mas todos temos de agradecer o esforço. À maneira do texto do escritor, também este trabalho de amor pela terra e pelo país ganha forma.
Ganha nova forma também o colectivo de cozinheiros portugueses, com mexidas recentes. Alexandre Silva foi para o Bica do Sapato, deixando o projecto do hotel Marmóris, em Vila Viçosa, de que foi fundador. Parece que vai para lá Pedro Mendes, o cozinheiro que mudou a forma como olhamos para a bolota, dando-lhe declinações inéditas. Henrique Mouro está a chefiar a cozinha do exótico Tavares, apostado no dilectíssimo sabor português, que tem abraçado ao longo da sua carreira. João Sá tem a difícil tarefa de lhe suceder no Assinatura, mas pelo que vi está como peixe na água. Esperamos de todos estes bravos luta sem tréguas contra crises e pessimismos. E desejamo-lhes, de novo evocando Agustina, boas moções no seio dos seus silêncios.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O maior coleccionador de guias vermelhos Michelin

Fixemos este endereço, ou coloquêmo-lo entre os favoritos do nosso browser internet:

http://www.cancela.org

É um dos maiores repositórios de "história michelin", contendo os lugares perfumados pela visita dos inspectores ao longo dos seus imponentes cem anos de história.