terça-feira, 30 de julho de 2013

Ai deseja?

Abusa-se do verbo "desejar" nos restaurantes, não acham?

Lembro-me de ler um texto de Agostinho da Silva sobre o desejo, era ele bem vivo e animava tertúlias, nalgumas das quais tive a felicidade de participar. Era muito melhor a escrever do que a falar, a sua expressão corporal e o tom de voz com que exprimia o seu pensamento davam-me uma espécie de urticária. O texto sobre o desejo era profundo, ritmado e sentia-se-lhe o silêncio quando se lia. Belo, portanto, acima de toda a suspeita, com a advertência especial de que o nosso desejo sobre alguém ou alguma coisa tinha sempre o efeito imediato de limitar o objecto do desejo. Admito que o desejo, dito como palavra solta, prefigure para a maioria alguma espécie de moção sexual, mas realmente é pena cingir a palavra a um significado tão mesquinho. O pensador português desaparecido em 1996 falava e escrevia muito sobre o desejo de liberdade, por exemplo, como um dos mais emancipadores e fundadores na relação com o outro. Que o nosso desejo próprio de liberdade é maior do que o desejo de conceder liberdade àqueles que mantemos prisioneiros dos nossos sentimentos. Isto, digo eu agora, para não falar dos que sentem desejo de ser prisioneiros de alguém. Aquilo que quero não é necessariamente o que eu desejo.
Acontece-me muito o assunto do desejo vir à baila nas minhas conversas forçadas com os empregados de mesa de um restaurante mais selecto. As invectivas do tipo “deseja pão?” ou “deseja mais um pouco de água?”, além de me darem quase a mesma urticária que Agostinho da Silva me dava quando falava em vez de escrever, levam sistematicamente a mesma resposta: “desejar, desejar, não, mas quero!” Reconheço que levo as palavras demasiado a sério, e que o empregado está só a querer ser respeitador e polido. Mas também os há que nos descrevem um prato como se fôssemos atrasados mentais, apontando ainda por cima para cada ingrediente com o dedo mindinho esticado, feito ponteiro. E se há coisa que a mesa de um restaurante deve consagrar é o bem-estar de cada cliente, cabendo ao pessoal de sala o alívio de todo e qualquer constrangimento provocado pelo serviço. Apesar de indefeso e limitado ao espaço físico de uma cadeira, tenho os meus direitos. E se todo o empregado sabe que não se deve meter nas conversas que decorrem à mesa, também deveria saber que pão e água não são coisa que se deseje. Por outro lado, se ele me perguntasse “quer pão?” ou, pior, “que pão é que quer?”, eu acho que ficaria ainda mais ofendido, pela forma intimidativa de me fazer uma pergunta. Foi a propósito disto que outro dia tive uma autêntica epifania, fazendo-me recordar a discussão do desejo em Agostinho da Silva.
Parece-me que quando nos sentamos à mesa, não nos importamos de ser dominados e, de certa forma, até esperamos sê-lo. O nosso desejo de liberdade mantém-se, mas de certa forma penhoramos parte dela a favor daquilo a que chamamos serviço de sala. Pressupõe, entre outros, que quem nos serve deseje a nossa liberdade, o nosso bem-estar. Entre as dominações por nós admitidas poderia estar, por exemplo, “temos pão de centeio, cerveja e azeitonas, além da nossa baguete”, que nós logo perceberíamos que a ideia era escolher nquele instante, mesmo que não nos apetecesse. Há muitas formas de exercer o poder sem agredir.

Outros desejos

Apesar da pequena urticária provocada pela hipersensibilidade aos comentários e verbalizações dos empregados, o que eu desejo mesmo é que os nossos restaurantes consigam manter-se abertos e com saúde financeira. Há três factores que me apavoram no cenário actual. Primeiro, a perda geral de clientes que se verificou desde o início do ano, por uma espécie de pânico instalado entre os particulares, debandando dos restaurantes pela perda súbita de poder de compra. Segundo, o aumento significativo de custos fixos imputados aos restaurantes. Terceiro, o ritmo de encerramento de casas que aumenta a cada dia que passa, gerando uma onda grande de despedimentos na restauração. A carga está mesmo a ficar pesada. Vamos ver o que acontece em Setembro, na rentré. Confiemos na endurance e espírito combativo dos empresários, principalmente os cozinheiros-empresários, que normalmente não têm backup financeiro para suportar muitos dias seguidos com pouco trabalho. Além de ser os nossos bravos, são também os nossos talentos, que não queremos perder nem ver em situações limite, se é que não estão já. Tentemos visitá-los, mesmo que optemos pelas suas soluções mais económicas, caso dos “menus executivos”. A resistência à crise passa também pela atitude psicológica certa e positiva. Um cozinheiro terá sempre mais auto-confiança com uma sala cheia do que com duas ou três mesas de clientes. Desejo força e vontade a todos os que estão neste momento na frente da batalha e que isto passe depressa. Não só desejo mas quero.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Mascavado

Utilizava-se por cá, há mais de sete séculos, o verbo "cabar" e que grosso modo queria dizer "gostar, prezar". Quando por exemplo se desobedecia às ordens de um superior, dizia-se que se estava a menoscabar o chefe. Mais tarde, passaria a utilizar-se menoscabada para dizer que certa coisa ou trabalho estava incompleto. A introdução do açúcar nas nossas vidas, foi encontrar a expressão mascavado - evolução do termo menoscabado - para dizer que havia o refinado e o outro, incompleto, ou mascavado, mais rico mas menos saboroso.

A lição de James Bond

Ter segurança no contacto com o sommelier pode, afinal, salvar-nos a vida!

O super-espião 007, James Bond, é uma só figura de muitas caras, o que é em si mesmo um feito. Em “Diamonds are Forever”, (1971), Sean Connery prova um grande vinho de Bordéus que lhe é servido por um assassino disfarçado de sommelier, mas que ele apanha logo na primeira curva. O empregado abre o vinho com uma daquelas agulhas cómicas que já se venderam por cá, injecta gás comprimido e a rolha salta para fora. Serve um pouco de vinho ao agente secreto, que o prova e comenta que “é bastante potente, não o sistema de tirar a rolha, mas o seu after-shave; suficientemente forte para enterrar tudo e mais alguma coisa. Mas o vinho é excelente, embora, para uma grande refeição, eu esperasse que me servisse um clarete”. Aqui, o sommelier assina a sua sentaça de morte, ao responder “concordo, mas infelizmente não temos mais claretes na nossa garrafeira”. James Bond fita-o nos olhos e diz “mas Mouton Rothschild é um clarete. Além disso, é a segunda vez que cheiro esse after shave, que já da primeira me tinha cheirado a rato”. Segue-se a proverbial pancadaria desenfreada, com Sean Connery a sair, como sempre, ileso. Neste curtíssimo trecho da história do cinema, de forma quase imperceptível, aprendemos mais que sentados em muitos cursos formais de iniciação ao vinho. A primeira aprendizagem é que o vinho de Bordéus é para os ingleses conhecido como “clarete”. O nome vem dos tempos em que o vinho perdia muita da sua côr na viagem de barco de Bordéus até Inglaterra, tanto pela agitação da viagem marítima como pela exposição ao sol; clarete é, de facto, sinónimo de vinho de Bordéus e é rigorosamente isso que significa, por muito que se lhe queira impor outras cosméticas. Em segundo lugar, há uma chamada de atenção para o cheiro do empregado que serve o vinho, experiência que quem frequenta restaurantes teve já de muitas formas e com intensidades diversas. Mais que um cheiro espúrio, enjoativo, muitas vezes devido a roupa que não vai muito à lavandaria, é o cheiro a perfume que mata a nossa percepção do vinho que provamos. Não é coisa em que eu pense muito, e felizmente não me acontece estar a pensar mais no perfume que o sommelier utiliza do que nos aromas e sabores do vinho que ele me está a propor. Em terceiro lugar, o civilizadíssimo agente Bond faz uma ponte entre o que vai comer e o vinho que vai tomar. É uma espécie de fantasia de refeição perfeita que anima o herói sedutor, bem acompanhado mas sempre alerta. Finalmente, percebe-se como facilmente se pode desmontar o conhecimento de um empregado de mesa mal treinado, fazendo-lhe algumas perguntas chave, a que só o conhecedor profundo consegue responder cabalmente. (Por acaso não sei quantos sommeliers portugueses sabem o que quer dizer clarete, mas também não é disso que estamos a falar.)
Gostava de ter visto a carta de vinhos que foi dada ao espião britânico para escolher o vinho do lauto e romântico jantar que está prestes a iniciar, mas a impecabilidade do ambiente e da decoração sugere-me fortemente que estamos num super-restaurante, três estrelas michelin, com uma cave copiosa e farta. Será deformação profissional, talvez, mas o meu pensamento vai rapidamente para como pela forma como a carta estava organizada teria sido simples embaraçar o empregado com duas ou três questões, e perceber que de facto ele não tinha formação de sommelier.
Fica espaço para pensar um pouco mais a sério sobre a eterna questão de como se deve avaliar a carta e o serviço do vinho num restaurante. À maneira de treino para não ser morto por James Bond, deixo alguns pontos para reflexão, sem ordem específica. 1) Diversidade. É o matiz variado das regiões, produtores, colheitas e estilos de vinho em geral, e tem gostinho de passeio virtual por entre delícias e sensações. 2) Qualidade. Contra as cartas feitas “pour épater la galerie”, repletas de títulos sonantes, há as cartas que resultam de uma escolha rigorosa e às vezes personalizada, de coisas verdadeiramente boas. 3) Preços. É cada vez mais fácil saber quanto custa um vinho na origem e calcular o “markup” imposto pelos intermediários ou pelo próprio restaurante. Nem sempre as margens maiores significam mais facturação... 4) Copos. Que sentido tem servir um grande vinho num copo de vidro grosso? 5) Indicação de Colheita. Por incrível que pareça, há muitos restaurantes que ainda não colocam o ano de colheita de cada título disponível na sua carta, quando de ano para ano tantas vezes as coisas mudam! 6) Arrumação da carta. Clareza de organização, facilidade de escolha e sobretudo transparência, são aspectos fundamentais. 7) Vinho a copo. Vai sendo um imperativo de serviço do vinho e aqui temos mesmo de andar depressa. Em qualquer parte da Europa, um bom restaurante não tem menos de 20 bons vinhos a copo. 8) Adequação dos vinhos à oferta sólida. É para acompanhar a comida que o vinho serve, afinal! 9) Especialização. Duas ou três regiões preferenciais numa mesma garrafeira de restaurante, indica cuidado com o consumidor, a quem um dia pode apetecer explorar as coisas boas de uma, noutro dia de outra. 10) Temperatura de serviço. Numa palavra apenas: crucial!

Aí está o Vintage 2011 em todo o esplendor!

Enquanto vemos o que o futuro nos reserva, temos razões para confiar no valor e glória do vinho do Porto. A categoria Vintage acaba de conhecer mais uma declaração clássica.

A melhor forma que encontro para exprimir o que sinto acerca do ano vitivinícola de 2011 em geral e do porto Vintage em particular é que tenho a sensação de que não vou assistir a outro assim na minha vida. Um pouco por todo o país, damos com um padrão nos vinhos que é, a um tempo, profundo e sedutor. Consegue o milagre de ser consensual, quando quase todos os vinhos de mesa topo de gama desta prodigiosa colheita precisam ainda de um par de anos em garrafa para revelar todo o seu real valor. À medida que vão sendo colocados no mercado, todos somos forçados a perceber que estamos perante uma nova ordem de tintos. Todos gostam, e os felizes compradores ou coleccionadores vão, no geral, ter belas surpresas no futuro. A palavra-chave de 2011 é equilíbrio. Depois, uma fiada longa de adjectivos positivos. Uns mais abertos que outros em termos de aroma, os vinhos apresentam uma grande unidade de boca e uma concentração notável. Virtude porventura de uma vindima em que em todo o país os bagos estavam de boa saúde, carnudos e no ponto ideal de maturação, apesar de ao longo da campanha ter havido altos e baixos. De facto, esteve-se longe da linearidade e previsibilidade.
O vinho do porto tem na categoria Vintage a contrapartida directa da campanha vitivinícola das outras denominações de origem e regiões portuguesas. Em rigor, de resto, vintage quer dizer colheita e começou há várias décadas a ser utilizada essa designação para dizer que se trata de um vinho do porto de uma só colheita. Era pois natural, face à óptima qualidade de 2011 declarada pelos produtores de vinho do porto, que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) avançasse para a designação de “clássico”, o que acontece em média três vezes por década. O nível geral é excelente, o que tenho comprovado em provas parcelares diversas e nos foi dado aferir numa grande prova organizada conjuntamente pelo IVDP e pela Confraria do Vinho do Porto, sugestivamente chamada “Vintage 2011 World Presentation”. Reuniram cerca de 30 especialistas do mundo inteiro para provar, num bonito espaço da Foz e com o Atlântico quase a banhar-nos os pés, 56 amostras em prova cega. Organização notável, com uma sequência adaptada ao gosto e ritmo de cada provador, sem constrangimentos de tempo. Fizeram a abertura da sessão Bento Amaral, chefe da reputada câmara de provadores do IVDP; Charles Symington, responsável pela produção do grupo Symington Family Estates, um dos maiores produtores de vinho do porto; e Dirk Niepoort, responsável pela Niepoort, que hoje reparte a sua excelente produção quase equitativamente entre vinho do porto e vinho duriense (DOC Douro), mas que continua a ter os portos no estandarte. Numa primeira alocução, Bento Amaral afirmou que após diversas provas estava muito satisfeito com o nível atingido em 2011. “A campanha de 2011 começou com um inverno rigoroso a que se seguiu uma boa primavera, depois um verão a alternar entre calor e chuva mas geralmente quente”, disse, completando que “como resultado obtivemos vinhos equilibrados, com grande potencial”. Já para Charles Symington, foi o ano de todas as emoções. Explicou que para a sua casa “a colheita de 2011 foi definida praticamente nas duas últimas semanas antes da vindima”. O ano apresentou muitos desafios diferentes e houve que proceder a muitos tratamentos nas vinhas. “Não sei se as pessoas têm a noção de que o Douro pode bem ser a mais difícil região do mundo, em termos de viticultura”. A fasquia da exigência tem vindo a subir dentro da empresa: “Todos os vinhos do porto Symington são feitos em lagares e além disso só utilizamos 10% das nossas uvas para fazer Vintage”. Empenhamento na qualidade. Dirk Niepoort, que apesar de estar a chegar aos 50 anos de idade continua a ser o “enfant terrible” de sempre; alguém que querendo inovar em todas as frentes gosta de honrar e continuar a tradição. Começou a sua exposição com a questão sacramental de o que é e o que deve ser um porto vintage. “Em primeiro lugar, é o melhor vinho do mundo”, disse peremptoriamente , acrescentando que “é uma categoria muito especial, que nos permite provar grandes colheitas várias décadas depois”. Sobre 2011, “trouxe consigo o equilíbrio e a força e penso que não me engano quando digo que pode bem ser a melhor colheita do século”. Grande expectativa, portanto, para a que prenunciava ser a prova do ano.

A prova

Ao longo de mais de quatro horas, com intervalos livres para cada provador, para que cada um tivesse o seu próprio ritmo de prova, pode dizer-se que foi um autêntico desfile de celebridades. De salientar que muitos vinhos apresentados eram amostras de casco, ou seja não estavam engarrafados na altura da prova. Dadas as alterações dos vinhos logo a seguir ao engarrafamento, isto significava que vários podiam estar um pouco abaixo do seu potencial. Para bem da salvaguarda de confirmação a que o jornalismo por princípio obriga, procurámos a seguir à prova esclarecer junto dos produtores todas as dúvidas, já com as garrafas “destapadas”, outra iniciativa louvável da organização. Isto foi particularmente importante no caso das amostras que apresentavam defeitos como TCA (ou rolha), acetaldeído ou redução, que depois se puderam esclarecer. Decidimos ainda incluir informação obtida de provas parcelares prévias, feitas em condições óptimas. Remando um pouco contra a maré e renunciando ao mero alinhamento dos vinhos por classificação, preferimos apontar os seguintes grupos: 1) Excepcionais, vinhos de recorte clássico e de uma integração notável, plenos de futuro, como se deve buscar num vintage novo; 2) Copiosos, vinhos que apresentando estrutura firme e boa frescura, impressionam pela força de aroma e sabor que apresentam; 3) Surpresas, títulos que ou estão há pouco tempo no mercado ou marcam em 2011 uma mudança de rumo; e 4) Muito Bons, que são os vinhos do Porto que correspondem à linha clássica dos grandes anos e que matizam, afinal, toda uma colheita com as suas nuances e diferenças.
Poderá parecer que se está a privilegiar as grandes casas, mas de facto é verdade comprovada que são elas que estão a elevar a fasquia para níveis jamais vistos na história do vinho do Porto. E de resto, há muitas e boas surpresas!


EXCEPCIONAIS

Andresen. Entra suave e equilibrado na boca, depois cresce em equilíbrio e força. Uma lição.
Burmester. O melhor até hoje? Floral inesquecível, estrutura bem urdida, comprimento interminável.
Capela da Quinta do Vesúvio. Elegância surpreendente, com tudo ainda muito fechado. Grande complexidade.
Dalva. Uma bomba de emoções, mas num registo de equilíbrio que impressiona. Grande trabalho.
Dow’s. Força, elegância e frescura, num equilíbrio insuperável.
Fonseca. Um colosso em termos de potência, e ao mesmo tempo a comunicar muito.
Graham’s. Muita força logo desde o início, para depois abrir em complexidade e sedução.
Graham’s The Stone Terraces. O equilíbrio entre componentes é tal que se torna difícil isolá-los! Muito discreto mas poderoso.
Kopke. Potente e ao mesmo tempo a mostrar grande recorte aromático. Impressionante.
Niepoort. Taninos muito finos num conjunto de enorme força e robustez. Nariz e boca num equilíbrio quase misterioso.
Pintas. Floral discreto, boca a evoluir vagarosamente, com toques de chocolate e gengibre. Entrada na primeira liga vintage!
Quinta da Romaneira. Como um edifício monumental, construído pedra sobre pedra, muita frescura.
Quinta das Carvalhas. Impressionante trabalho de enologia, grande expressão de um terroir de que esperamos sempre o melhor.
Quinta do Noval. Vibrante, como o coração de um gigante. Sente-se tudo em gestação.
Taylor’s. Poderoso, apresenta um perfil muito mineral e floral e uma força notável na boca.


COPIOSOS

Cálem. Monumento floral, com uma frescura mineral que o completa e equilibra. Muito fino.
Cockburn’s. Notas de chocolate preto e de flores. Comprimento e equilíbrio notáveis.
Croft. Notas de alcaçuz, café, numa exuberância muito discreta. Na boca sente-se-lhe a potência. Maravilha.
Ferreira. Entra discreto na boca, para depois revelar uma explosão de fruto preto e chocolate.
Offley. Forte em especiaria, está vigoroso na boca, a pedir guarda.
Poças. Trabalho enológico impecável, oferecendo um grande equilíbrio. Fim de boca potente.
Quinta do Portal. Boa estrutura, com a fruta madura a dominar o conjunto, quase pronto a beber.
Quinta do Vale de D. Maria. Chocolate, cereja madura, com prova de boca muito séria. Bom futuro.
Quinta do Vesúvio. Frutado a impor-se sobre uma estrutura bem trabalhada, num resultado guloso irresistível.
Ramos Pinto. Mineral tão intrigante quanto apaixonante. Coroa de frescura e flores. Belo.
Sandeman. Está quase pronto a beber, e no entanto adivinha-se-lhe bom futuro. Bela frescura.
Warre’s. Perfil clássico, a seguir um estilo muito elegante, assente no floral.


SURPRESAS

Alves de Sousa. Vinho está quase perfeito, pleno de elegância e força! Quebra com o passado.
Barros. Complexidade notável, forte mineralidade e ao mesmo tempo sugestão de trufas, sempre em equilíbrio.
Bioma. Todo ele é sedução e discrição, mas tem uma estrutura de aço, fina e indestrutível. Muito original.
Bulas. Não é consensual, mas ficámos presos à sua frescura, a toda a discrição do conjunto e ao comprimento de boca. Irresistível.
Cruz. Impressiona pela seriedade e virilidade. Tudo ainda para dar, há que lhe dar tempo.
Duorum. Mais tarde ou mais cedo, surgiria um vintage assim nesta casa. Grande frescura, belo vinho.
Maynard’s. Muito atraente e bem feito, sem cair em padrões reconhecíveis. Bom vintage.
Quevedo. Tudo o que um vintage novo deve ser. Força, equilíbrio e comprimento de boca.
Quinta da Casa Amarela. Estreia do produtor nos vintages. Muito floral no nariz, boca equilibrada, a terminar em força.
Quinta do Crasto. Resultado primoroso desta casa, seguramente o melhor de sempre. Bravo!
Quinta do Grifo. Nariz muito discreto, sobre o fruto. Boca impressionante pelo crescendo vagaroso e longo.
Quinta Dona Matilde. Surpreende pela finesse e pela elegância, tudo feito com esmero.
Quinta do Tedo. Muito boa complexidade e comprimento notável. Final de boca rico em pimenta.
Rozès. Entra fininho e cresce sem parar, com grande elegância. Belo vintage!
Vallado. Vinho muito sério, com elegância e equilíbrio do princípio ao fim da prova.
Vieira de Sousa. Passa do anonimato para um estilo muito próprio, rico em especiaria e fruta confitada.
Vista Alegre. Teve um desempenho notável na prova dos vintages, a ombrear com os melhores. A acompanhar!


MUITO BOM

Churchill’s. Mineral muito concentrado, vinho de perfil austero mas que está quase pronto a beber.
Delaforce. Fruto bem presente, a evocar a ginja muito madura. Notas de compota e folha de tabaco.
Passadouro. Floral intenso, boca explosiva, tudo é forte! Ninguém vai ficar indiferente.
Presidential. Perfil clássico, com notas sensíveis de chocolate e fruto seco.
Quinta Seara d’Ordens. Muita força, impressionante! A acompanhar na evolução em garrafa.
Quinta da Prelada. Exuberante em quase tudo, desde a fruta até às flores, passando pela compota. Muito bom.
Quinta do Pégo. Firme e elegante na boca, adivinha-se-lhe evolução mais em graça que em força.
Quinta de La Rosa. Sente-se uvas muito maduras, mas há notas de boca que o tornam único. Maravilha.
Quinta do Sagrado. Quase pronto a beber, é rico em especiarias e cheio na boca.
Quinta do Vale Meão. Praticamente pronto a beber, está bem feito, com notas frutadas e especiadas.
Quinta do Valle Longo. Está praticamente pronto a beber, parece ter sido feito com esse propósito.
Smith Woodhouse. Se houvesse uma categoria de “vintage de prazer”, seria este! Delicioso.

domingo, 28 de julho de 2013

Carapaus alimados

Após uma salmoura de um dia inteiro por que passam os carapaus, acontece um fenómeno mais ou menos esperado mas que não deixa de ter os seus encantos. Os sucos vão-se para dentro do sal e a carne enrija, o que faz com que os peixes passem a peixinhos. São esses peixinhos que depois da salmoura têm de ser passados por água fria corrente ao mesmo tempo que são escovados, ou limados, com os dedos. É por isso que se chamam carapaus alimados. Não é porque são temperados com limão. OK?

Imagens em movimento - ai a TV!!!

Dentro dos canais temáticos, a gastronomia não podia estar mais ao rubro. Concursos, entrevistas, show-cookings, reportagens, harmonizações com vinhos, de tudo vemos a toda a hora. Estaremos nós preparados para o desafio?

Duas da manhã em Paris. Casa emprestada no coração do quartier latin, ligo a televisão e faço um zapping rápido, mais para ver o que se passava do que para combater a insónia, que raramente tenho. O dia tinha sido cheio de novidades e eu estava particularmente actuado pela ideia fixa de escrever sobre o que tinha visto nas mercearias locais, garrafeiras e um restaurante japonês que me impressionou muito, onde tinha estado a jantar. Enquanto zappava, permitia que me assaltasse o perigoso pensamento de que de facto em Portugal estamos a uma grande distância daquele primeiro mundo com que esbarramos sempre que vamos a Paris em balada gourmet. A ideia de outro mundo. No ecrã, de repente, Jean-Luc Petitrenaud, a fazer-me levantar o polegar do botão “P+”. Pus mais alto para ver o que se passava, porque ele estava ao pé do grande Paul Bocuse; o mesmo que tem três estrelas michelin há quase cinquenta anos no seu restaurante dos arredores de Lyon e de quem por cá se diz, de forma tragicómica, que está ultrapassado. Petitrenaud é um daqueles jornalistas gastronómicos que corporiza, mais que um crítico, um personagem. Tem formação de actor e desempenha como ninguém a função gastronómica de forma televisionável. A acção passa-se no restaurante de Bocuse após o encerramento, já noite adiantada, e Petitrenaud pergunta a Bocuse se ele concordava que a cozinha de estrelas michelin era toda ela um bocado complicada. Ele disse que não, que não havia coisa mais simples. E decidiu dar um exemplo, o dos “oeufs beaujolais”, leia-se ovos escalfados em vinho beaujolais. Num movimento cómico, Jean-Luc comenta o tamanho da panela de 10 litros que o chef decide utilizar, com um comentário de extremo bom humor: “acha que o ovo cabe aí?” Bocuse achou que sim, enquanto deitava para dentro do recipiente o conteúdo de nada mais nada menos que seis garrafas de vinho. O crítico coloca-se entre a câmara e o chef e faz um sinal tipo Obélix, “estes franceses são loucos”. Francamente divertido. Após o imenso caldo vínico começar a fervilhar, Bocuse parte um ovo para uma tigela e coloca-o cuidadosamente na panela para logo de seguida, com uma concha grande, imprimir um movimento rotativo ao ovo inteiro, enquanto falava sobre alguns aspectos da sua infância, e de como era bonito quando a mãe dele fazia aqueles ovos. “Vê, isto é fácil”, dizia o chef Bocuse, ao mesmo tempo que a câmara fazia um “zoom in” no ovo, que agora viajava a alta velocidade em torno do seu próprio eixo, sempre com o impulso certeiro da grande concha. Petitrenaud ironizava, ao mesmo tempo, com “sim, sim, facílimo”. E o ovo não parava de girar. De repente, tirou o ovo da panela, colocou-o num prato, picou salsa e decorou com ela o ovo. Comentário final de que a simplicidade é tudo, mas Petitrenaud diz ao grande chef “mas estragou para aí vinho que foi um disparate”. Assumiu o lugar do espectador e deu oportunidade ao cozinheiro de se explicar doutra forma. E de uma coisa trivial, conseguiu fazer um assunto televisivo que me pôs colado ao ecrã. No seu estilo teatral, a puxar ao cómico, percorreu a França inteira, fazendo programas todos eles de antologia. Uma vez, em Toulouse, encontrou um restaurante chic ao lado de um bistrot muito básico e fez uma proposta a ambas as casas: preparar uma galinha com legumes, cada uma ao seu estilo. Ao longo de 45 minutos, ele entrava e saía de cada lugar, sempre para ver o que acontecia em cada um, e de repente acontecia a refeição. Quando todos podiam pensar que aquilo acabava bem, eis que ele insulta o cozinheiro chic, dizendo-lhe que tinha exagerado nas natas e que o ponto de cozedura da galinha estava mais que passado. Vai ao bistrot do lado e dá os parabéns à senhora que tinha cozinhado a galinha, dizendo-lhe que era exactamente aquilo que as pessoas podiam e deviam esperar da sua casa. O primeiro chef ficou contrafeito, mas ele não foi em modas, junto ambos na mesma mesa e tiveram uma conversa a três enquanto bebiam uma cerveja. Brilhante.
É claro que os bons programas exigem equipas numerosas, produção, pós-produção e guiões cuidadosamente escritos. E entre o programa de Petitrenaud e uma filmagem estática de uma mesa com duas pessoas a comentar um vinho cabe todo um mundo de bom gosto, conhecimento e capacidade de comunicação. Mais tarde ou mais cedo, teremos de começar, até nós, a treinar-nos no vídeo e na televisão. E se há treino que é fundamental, é o de saber como se agarra e prende a atenção de um telespectador. Dinâmica, mudanças de planos, detalhes, montagem, animação, fundamental é comunicar. Sabemos todos que é um desafio grande o que aí vem, com a erosão do papel e a explosão do online. A pergunta é se vamos conseguir ou não e a resposta é: em princípio sim.

Inspirações cósmicas em terras algarvias

É muito difícil, além de necessariamente injusto, fazer julgamentos do tipo “ o melhor restaurante”, hotel, praia ou vista. Como é evidente, depende dos critérios utilizados e do que se procura avaliar. Por muitas voltas que demos, nunca a questão do gosto será universal, nem tão pouco caminho para um alinhamento justo dentro de determinada categoria. Andando pelo Algarve atrás, fui há um par de semanas apanhado por pensamentos provocatórios – de mim para mim -, enquanto jantava no restaurante onde outrora existia um telheiro que servia peixe grelhado divinal. Deu lugar a um lugar que se entende como moderno, mas onde se come francamente mal. O dono morreu, explicaram-me, enquanto me tentava conter perante o odor da margarina queimada que erradamente marcava o fundo das minhas gambas ao guilho (“al ajillo”, como eu pedi, não tinham, “nós servimos é o guilho”). Tomaram conta do lugar e então “fizeram uma coisa mais moderna”. Os filetes de pescada eram cómicos; daqueles que nem de pescada são e que compramos no hipermercado, depois fritos em óleo de terceira categoria, à temperatura errada. O chão tremia, à passagem dos empregados, o que me pareceu estético, em sintonia com toda a insegurança da experiência. Era da construção de qualidade que fizeram, no lugar do telheiro de boa memória onde se comia como no céu. No fim paguei mais de 50 euros, saí dali com uma pena enorme do que ali aconteceu. Ao longo dos últimos 20 anos, habituei-me à ideia de que as coisas estavam a melhorar no Algarve. Um pouco por todo o lado, bom peixe, marisco, sítios bonitos, empregados bem treinados, até novos e bons produtores de vinho; tudo a sugerir que se estava melhor. Fiquei um bocado triste.
Mas não se pode tomar o todo pela parte e há muita gente em total contraciclo com o a fenómeno “armadilha de turista” que acabei de relatar. A excelência da alta cozinha está ao rubro no Algarve. Temos ali a nossa maior concentração de estrelas Michelin, e não é em vão nem, como muitos julgam, por força do capital. Se assim fosse, haveria mais no nosso país. Tal como o dono do telheiro que servia um peixe fabuloso, temos de ir à procura das grandes personalidades que estão por detrás dos igualmente grandes projectos. Claudia Jung, fundadora com o seu marido Klaus do super-restaurante Vila Joya, na Praia da Galé, já não está entre nós, mas começou um projecto de grande excelência que continua a merecer as duas estrelas Michelin que ainda ostenta. Aproveito para desejar à ainda jovem Joy, filha do casal Jung que assumiu em pleno a direcção daquela casa, que siga o seu coração enquanto motor da vontade e que jamais desanime; nós cá estamos, para tirar as pedras do caminho. E tenho de pôr os olhos na figura prodigiosa de Kurt Gillig, actual director do super-hotel Vila Vita Parc, em Alporchinhos. É chef de formação, trabalhou no Vila Vita ainda como cozinheiro, depois passou a director de vinhos e comidas e desde há alguns anos é o director geral do hotel. A sua obsessão pela qualidade e rigor, sempre a favor do cliente individual, encontrou braço valente no irrequieto e enérgico chef Hans Neuner, e fizeram do Ocean, o restaurante top do Vila Vita, o dois estrelas que é hoje. Na noite seguinte ao descalabro que relatei no primeiro parágrafo, jantei no Ocean. Já fiz lá várias refeições, mas devo confessar que só uma de há um ano, por razões que guardarei para sempre no meu coração, superou a sensação de redenção que tive. Coreografia de sala impecável. Serviço a toda a prova. Conhecimento dos empregados de cada prato. Sequência de proteínas e temperos no menu de degustação. Acerto dos vinhos escolhidos. Ritmo. Procurei na memória experiências semelhantes e vieram três, duas delas em Espanha, outra em França. Curiosamente, com o denominador comum de três estrelas Michelin. Não tenho dúvidas de que será o Ocean o nosso primeiro a chegar ao topo da escala.