quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

As bolas e a praia

Os areais da linha, de Algés a Cascais, eram há cinco décadas lugares que serviam para fazer vida de praia. Nós vivíamos na Estrela e no mês de Julho mudávamos-nos para Santo Amaro de Oeiras de armas e bagagens, para voltarmos apenas um mês depois. Nem se falava em vir a Lisboa. Era muito longe. Ainda passeei à beira-mar com uma tia-avó na que ela insistia em chamar praia de Algés, mais ou menos em frente a Pedrouços, hoje coisa vastamente impensável. Este tipo de perplexidades fazem-me sentir um bocado dinossauro e se não tivesse a certeza absoluta, diria que nunca estas coisas tinham acontecido. Mas não só aconteceram como há mais, do tempo deste microjurássico. Depositados na praia com um ou dois adultos para tomar conta de nós, todos os primos, entrávamos no ciclo do costume dos banhos, brincadeira e futebol – era giríssimo fazer túneis na areia molhada, imagine-se! – e mais ou menos a meio da manhã aparecia uma senhora vestida de branco com uma caixa metálica grande vermelha sobre a cabeça. Lia-se “Maria dos Bolos” e todos sabíamos o que lá vinha dentro. Bolas de Berlim quentinhas, acabadas de fazer na padaria, recheadas com um creme pasteleiro que ainda hoje tenho na memória. Era um momento mágico, o da distribuição das bolas, verdadeira maravilha. Havia quem fosse do contra e preferisse um jesuíta, um éclair ou um pastel de nata. A maioria, contudo, optava pela bola, que uma prima minha dizer ser “de berlinde”. A mesma que quando ia à água, os pés desapareciam para debaixo da areia molhada, e gritava desalmadamente que “estava fora de pé”. Rábulas que se transformaram em memórias cheias de ternura. Muita areia trinquei eu, deixava cair a minha bola ao chão muitas vezes e depois não conseguia sacudir suficientemente o que vinha com a superfície peganhenta do bolo, resultado da fritura em óleo. Fazia parte, tudo fazia parte.
Mais tarde viria o homem da Olá, também ele vestido de branco e com uma sacola pesada a tiracolo, onde trazia os gelados do nosso contentamento. Recolhíamos a casa por volta da hora do almoço, para as bicicletas, os jogos e às vezes o cinema. Tenho uma certa dificuldade em olhar para uma bola de Berlim sem me vir à cabeça a praia da infância e por que se chama assim. Da primeira acabei de tratar, da segunda é simples: o bolo é uma cópia de um bolo fechado, massa semelhante e também ele frito, chamado “berliner”, ou seja, de Berlim. Na capital germânica, encontra-se um recheio de compota de fruta no interior, mas no exterior é totalmente homogéneo. Cortado e recheado com creme pasteleiro, parece que só nós. E continuamos a produzi-lo, apesar do desmazelo do emprego dos malditos “mixs”, que atiraram a nossa tão original pastelaria para as catacumbas, prisioneiras dos grandes fabricantes de massas, recheios e preparados. As pastelarias, por sua vez, mesmo muitas das que reclamam “fabrico próprio” nos seus toldos, mais não fazem que levar mixs ao forno. Parecemos tolos.

Nem tudo está perdido

Descanse quem pensa que o meu discurso vai azedar, nada disso. Como sempre e em tudo na vida, fixo-me nos bons exemplos e nas coisas positivas. A venda dos bolos na praia, essa é que está comprometida porque parece que têm de andar em embalagens herméticas além de outras exigências, em que prefiro não me deter. Sobre os bolos, mesmo os mais triviais temos a Norte um luzeiro seguro, de seu nome Francisco Gomes, proprietário da pastelaria Colonial, em Barcelos. Dedica-se a alta pastelaria, do mais alto nível, e, imagine-se, preocupa-se muito com os “clássicos” e triviais bolos da nossa história. Pão-de-ló e bolo rei, são assunto sério e recorrente na fantasia do grande pasteleiro. Sobre os dramas dos mixs e da perda de interesse da maioria em relação por exemplo, ao verdadeiro bolo de arroz, deu em que hoje numa pastelaria um queque e um bolo de arroz tenham o mesmo sabor horrível e a mesma gordura insuportável. Quem se lembra de comer um bolo de arroz a sério? O nome deve-se à utilização de um terço de farinha de arroz e dois terços de farinha de trigo e é tão simples de fazer como de cozer. Ainda por cima, pode fazer-se em casa! Acabados de fazer e arrefecer, são gloriosos, não é preciso ir muito longe para conseguir a receita original, qualquer pesquisa na net lhe dá a configuração certa. Aliás, de todos os bolos de mão vendidos normalmente nas pastelarias só o pastel de nata não se pode produzir num forno doméstico. Não pode? Não, não pode, a cozedura tem de acontecer entre 380 e 420 graus centígrados, quando os fornos domésticos não passam dos 300. É claro que se faz, mas mal, mas já sabemos que isso deixou de importar. Não são os supostos concursos do melhor pastel de nata que o estão a salvar; havia que ser pedagógico e atento. A massa folhada tem de estar estaladiça e coesa, impecavelmente cozida, enquanto o recheio tem de ficar com uma textura ligada mas quase liquefeita. Em vez disso, são-nos servidos pudins, prolongar o tempo de cozedura é a única forma de nos fornos menos potentes se conseguir cozer a massa.
De repente, vem-me o pregão da Maria dos Bolos à mente: “Olhá bolinha de Berlim fresquinha”. Tenho de ir.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Michelin 2015: Portugal atinge a excelência (NM)


O guia vermelho Michelin 2015 para Portugal e Espanha acaba de ser anunciado, com uma extraordinária notícia para o nosso país: José Avillez é o primeiro chef português a alcançar duas estrelas, com o seu Belcanto. Outros dois portugueses, Leonel Pereira e Pedro Lemos, acrescentaram uma estrela cada um à constelação nacional. Estamos no bom caminho.

A provecta idade de 114 anos não tolhe os movimentos nem o respeito do mais famoso guia de restaurantes do mundo e continua a provocar o mesmo suspense sempre que se aproxima a data de lançamento em cada país. Claro que as coisas mudaram muito, o mundo hoje é todo um outro, em todas as frentes. As comunicações evoluíram como sabemos e é impossível conter a vaga gigante de "novos críticos" que invadiu o ciberespaço. Se ir a um restaurante famoso é notícia, publicar uma crítica é muito mais. A essência e potência de ferramentas como TripAdvisor e Zagat está de resto na aparente democratização e efeito directo de "ajuste de contas" que permite; da necessidade absoluta de impor uma opinião, por injusta e disparatada que seja. Há fóruns de partilha de opinião e avaliação de restaurantes espalhados por todo o mundo, nos quais mal ou bem vai-se construindo conhecimento em suporte virtual. E há blogs mais ou menos responsáveis, que vão tacteando os princípios do jornalismo e dando notícias às comunidades de seguidores que os seguem. Hoje googla-se o nome de um chef ou restaurante e encontra-se informação abundante, parte da qual até dispensamos, tal o nível particular e detalhado a que se chega. Acabo de fazer isso eu próprio com o nome de Bernard Loiseau, para ver chapado o que não me interessa, de todo em todo, para mais na wikipedia, o assunto do seu suicídio em 2003, supostamente cometido quando leu no Le Figaro a notícia de que iria perder o estatuto de três estrelas Michelin, que detinha desde 1991. Paul Bocuse afirmou então que o que desmoralizou o seu pupilo dourado da Borgonha foi primeiro a descida de 19 para 17 valores no guia GaultMillau, depois um par de artigos de jornal demolidores sobre a sua cozinha e a forma como se tinha perdido de si próprio enquanto chef, criando uma máquina empresarial muito pesada que chegou a estar cotada em bolsa. Nem a sua fantástica e prodigiosa companheira de vida, Dominique, mãe dos seus três filhos conseguiu demovê-lo da ideia fixa de que ele tinha sempre de ser o melhor, nunca aceitaria cair. Os detalhes sucedem-se para quem quiser saber mais, mas o que na altura se lavrou por toda a parte e o que ainda hoje aparece no google é que Benard Loiseau pôs termo à sua vida por recear perder as estrelas Michelin. Para que serviu e serve este tipo de informação? Para acicatar ainda mais a animosidade contra o guia vermelho. Que é o guia que todos adoram odiar.
Foi um privilégio enorme para mim coordenar a edição de Abril de 2012 da revista Evasões, inteiramente dedicada ao guia Michelin. Contámos com a colaboração da equipa Michelin sediada em Madrid, onde estive com o então director do Guia conjunto de Portugal e Espanha, Fernando Rubiato e que nos dá a entrevista central do trabalho. Tive oportunidade de conversar desassombradamente sobre a aflição que eu levava no alforge, creio que em nome dos portugueses. Por que não tínhamos mais estrelas, por que era tão mais fecunda em estrelas Espanha que Portugal, e algumas outras questões. Há um momento da entrevista que recordo com nitidez, aquele em que Rubiato me diz que que a Michelin é como um navio de grandes dimensões; segue com segurança a rota programada, o que é bom, mas tem dificuldade em mudar rapidamente de rota o que pode ser menos bom. Na conversa revelou conhecer a fundo o nosso sistema de comunicação informação, em particular blogs, fóruns, revistas, guias e até programas de televisão. O meu sentimento nacional foi particularmente interpelado quando ouvi o director do guia ibérico dizer que a informação que aparece é contraditória. "O melhor para uns é o pior para outros". Não valia a pena refutar, ele tinha ali à mão um arquivo com tudo o que por cá se dizia e publicava. Entristecido, tive de lhe dar razão, perante os factos não havia argumentos. Cingiu o nosso historial estrelado desde 1974 até aos nossos dias - lista que publicámos na dita edição da Evasões - demonstrando como o tempo acabava por dar razão à avaliação feita. Mais que premiar um restaurante, avalia-se a solidez do seu projecto e, assim, garante-se a durabilidade da distinção. O que está no prato é determinante, mas um restaurante deve ser avaliado também e sobretudo como empresa. Os inspectores Michelin têm, todos eles, pelo menos 6 anos de experiência de direcção hoteleira. Nenhum é jornalista nem crítico gastronómico. E todos são empregados do guia em regime de exclusividade. A estupefacção com que em Portugal temos recebido ano após ano a lista dos estabelecimentos distinguidos com estrelas no guia Michelin, apesar dos contornos de injustiça, tem provavelmente razões por detrás que nos escapam. Os restaurantes podem e devem perguntar a Madrid o que se passou e quais as razões de uma despromoção ou de uma ausência, no entanto há que dizer que de cá raramente se liga para lá. Podem e devem ligar se nunca foram visitados e pretendem mostrar os seus trunfos culinários e as suas casas, dizendo explicitamente que querem ser avaliados; não tem sentido a falta de coragem que dizem sentir os proprietários de restaurantes e os chefs a quem digo isto. Acreditam ou não no seu valor? E quem visita enquanto cliente determinado restaurante também pode e deve dar o seu feedback para a Michelin. Um imperativo de consciência a cumprir por quem sente a necessidade absoluta de contribuir para uma melhor leitura internacional das casas portuguesas. Como se faz? Simples. Ir ao site viamichelin.com e enviar a sua opinião, identificando-se claramente e deixando os contactos. Fica desde já a saber que se enviar opiniões negativas, está em linha com a maioria das pessoas que dá feedback para a Michelin; raros são os que enviam retorno favorável sobre uma casa. Lamentável, mas verdade.

Estamos em festa

O navio grande de que falei atrás parece finalmente ter orientado a sua rota para os valores nacionais. José Avillez vê coroado o trabalho notável da sua equipa com a segunda estrela Michelin, dado duplamente inédito, por se tratar de um chef português e de um restaurante lisboeta: o Belcanto. Quem conhece esta casa sabe que é lugar mágico, de serviço irrepreensível e de uma qualidade que não se conhecia de mão portuguesa. Esteve para acontecer no ano passado mas o tal "navio" achou que não havia condições para ancorar. Ninguém desarmou, antes se trabalhou com mais afinco, pude atestá-lo e dá-lo a atestar num almoço com o amigo José Peñin, decano dos críticos espanhóis de vinhos, em Junho deste ano. Grande grande casa está aqui, proibido falar de sorte, falemos antes de trabalho. Os outros biestrelados nacionais, Vila Joya (Galé) e Ocean (Vila Vita Parc, Alporchinhos), com vista um para o outro através da grande baía de Armação de Pera, estão sólidos nos respectivos postos. Penso contudo que é inevitável a terceira estrela para o Ocean no próximo ano, já que neste a teimosa âncora decidiu não se soltar. O trabalho de sabor e gosto de Dieter Koschina no Vila Joya preenche-nos talvez mais, mas o primor de Hans Neuner no Ocean é de ir às lágrimas; já me aconteceu.
Depois é só de uma estrela que falamos. É comovente o extraordinário desempenho de Leonel Pereira no São Gabriel, em Almancil. Alguns meses após a sua chegada àquela casa, e sem inspector algum a ter visitado, perdeu a estrela. A explicação nada tem a ver com o chef, o que aconteceu foi que a empresa mudou de mãos, o que na lógica Michelin implica sempre pelo menos a reserva para o ano seguinte. O que posso dizer é que estão melhores que nunca, São Gabriel e Leonel. É glorioso ver o algarvio a vencer na sua terra, estrela portanto mais que merecida. Definitivamente, a marcar na agenda. Já que estamos no Algarve, fazemos a vénia a Henrique Leis (Almancil), brasileiro biónico e mestre da boa disposição, por manter a sua estrela e pela felicidade que transmite a todos os que o visitam, e a Willie Wurger (Vilamoura) pela tenacidade com que diariamente enfrenta a clientela do seu Willie's. Reconheço contudo que cheguei a temer pela queda da sua única estrela. Não perdeu, ainda bem.
Benoit Synthon, chef do madeirense Il Gallo d'Oro, restaurante do Cliff Bay, manteve a sua estrela, bem segura e alavancada na equipa excelente que soube montar tranquilamente. É a terceira vez consecutiva que lhe é atribuída, e agora, que o grupo se prepara para abrir uma nova unidade em Lisboa, vai uma vez mais ser posto à prova. Miguel Laffan continua com o seu pensamento muito estruturado e uma autonomia de trabalho notável, contrariando a lógica de desterro que muitos vaticinavam. O L'And Vineyards (Montemor-o-Novo, está definitivamente na calha, a bater à porta da consciência dos muitos alentejanos teimosos que insistem em resistir à visita. Não é favor nenhum, conhecer a cozinha de grande recorte técnico e de sabores profundos do chef cascaense, advogado indefectível da cozinha de proximidade e de raízes. A Grande Lisboa viu confirmadas as estrelas do Eleven e Fortaleza do Guincho, com que é preciso estar de acordo, Joachim Korper é o mestre de nível galáctico que todos os dias garante luxo à mesa, com o Tejo ao fundo, assim como Vincent Farges no Guincho, com o oceano inteiro. Fica, a propósito e mais uma vez, a segunda estrela por dar. Melhor do que ali se faz é impossível, só não concorda quem não conhece, o que se resolve facilmente, tal a proximidade da capital. O Grande Porto também marcou e como! Ricardo Costa, no seu glorioso reduto de Gaia que dá pelo nome de Yeatman, balaustrada mirante sobre o Porto e a Ribeira. Continua grande apóstolo do produto e defensor de uma simplicidade de sabor que põe nota fortíssima na cozinha. Está para durar e, quem sabe, crescer para a segunda, esta estrela boa. Pedro Lemos conseguiu a sua primeira estrela, para o restaurante com o seu nome, na Foz Velha. Ao contrário do que tem sido escrito não é a primeira estrela Michelin do Porto, há que recordar o Portucale, ainda aberto mas já sem estrela, e o Garrafão, em Leça, que já não existe. Pedro Lemos é possuidor de um enorme talento e tem a escola de Aimé Barroyer, com quem esteve mais de seis anos no Pestana Palace, em Lisboa. Liberdade criativa, técnica irrepreensível e assemblagem de pratos de perfil moderno, como se pretende e impõe. Termino a elencagem com o Casa da Calçada (Amarante), para destacar o fabuloso desempenho de Vítor Matos na cozinha. Viu reconhecido o seu trabalho ao manter a estrela, espero que a empresa lhe dê sempre condições para fazer o seu trabalho com serenidade e a felicidade que todos queremos ver no rosto de quem trabalha na linha da frente da nossa alta cozinha. Apesar das vicissitudes e do ambiente de crise em que estamos imersos, estamos melhor que nunca. Agora é não parar.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

António Saramago: pronto para mais 50

(Entrevista Feita em 2013, a propósito dos seus 50 anos de carreira)

António Saramago é um dos mais experientes enólogos do país. Pertence ao grupo dos profissionais intranquilos que têm criado vinhos de vanguarda, aplicando ao mesmo tempo o seu talento no transporte para os tempos modernos. Globalização, internacionalização, e sobretudo a ideia de que os vinhos portugueses têm de valer por si mesmos, seja em que circunstâncias for, são assuntos deste homem singular, que acaba de celebrar, aos 64, 50 anos de carreira.

Ao contrário dos cozinheiros, os enólogos não acompanham os seus vinhos até ao momento final do consumo. Como funciona esta profissão peculiar?
Totalmente orientada para o consumidor, mas com a assinatura do enólogo. Antigamente, os vinhos eram muito feitos ao gosto de cada enólogo, quase para seu próprio consumo. Os grandes vinhos, contudo, precisam da ratificação pelos grupos que consideramos nossos clientes, ou colecionadores.

Mas hoje vemos muitos vinhos feitos especificamente para certos mercados.
É verdade, mas a esses vinhos eu não consigo chamar vinhos da minha vida; são vinhos que faço para clientes e para mim próprio, enquanto técnico especializado de enologia.

O que é para si um grande vinho?
São os vinhos que conseguimos beber agora, e que duram 10, 20, 30 anos, sempre a dar-nos prazer.

Temos mais grandes vinhos hoje do que antigamente?
Isso não sei. Alguns dos vinhos que tive o privilégio de fazer dão-me ainda hoje, volvidos 20 anos ou mais, muito gozo a beber e sinto que ainda estão para durar. Devo dizer, contudo, que um certo grupo de vinhos estrangeiros aclamados pela crítica como grandes vinhos não vão durar nem uma década!

Gostava que a sua assinatura fosse sentida por quem prova os seus vinhos mais importantes?
Eu conheci grandes enólogos portugueses, grandes senhores do vinho, para quem, como para mim, o vinho é um produto muito nobre. A nobreza tem de perdurar. Todos eles têm um cunho muito próprio, que imprimem aos seus grandes vinhos. É claro que eu também gostaria muito que o meu cunho fosse sentido por quem bebe os meus vinhos melhores.

Como definiria o seu estilo de vinho?
É muito simples! (risos) Muita complexidade, estrutura bem trabalhada e boa acidez. Tudo num conjunto equilibrado.


O princípio

Como nasceu para o vinho?
Nasci profissionalmente no dia 2 de Agosto de 1962, numa grande empresa que foi também uma grande escola, a José Maria da Fonseca, em Azeitão. Tive dois grandes mestres, António Soares Franco, formado em Montpéllier, e Manuel Vieira, professor do Instituto Superior de Agronomia (pai do enólogo Manuel Vieira). O meu pai era o chefe do armazém, operando também como coordenador das operações e movimentações na adega. Tive o privilégio de trabalhar com Joaquim Costa, até 1973, altura em que ele saiu da empresa e eu, com 25 anos apenas, casei. Fiquei então eu a chefiar a enologia da casa, com o apoio científico de Manuel Vieira.

Sempre foi inequívoco que seria enólogo?
Fiquei ainda algum tempo no laboratório, a fazer as análises que ainda hoje faço, estava, então à frente da empresa o engenheiro António Francisco Avillez, que achou que eu devia ter uma formação em enologia. Achavam que eu provava bem. Fui então para a Universidade de Bordéus em três anos sucessivos. Foram meus colegas algumas das nossas actuais referências de enologia e aprendi com os melhores mestres. Pascal Ribéreau-Gayon, Émile Peynaud são alguns dos professores com quem estive cara a cara.

Não havia por cá nessa altura a figura do enólogo.
De facto, não havia. A profissão de enólogo só apareceu mais tarde no nosso país.

Continua a identificar-se com a escola francesa?
Absolutamente, e estou convicto de que continua a ser a plataforma de formação dos grandes enólogos.

Mas também se ligou a um professor da Califórnia.
É verdade, conheci o professor Roger Bolton, da Universidade de Davis, no final dos anos 70, quando ele estava a ajudar a montar o curso de enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Organizei uma prova vertical de moscatéis de Setúbal da JMF para o professor Bolton, que ficou totalmente siderado com a qualidade dos vinhos. Quis provar moscatéis dos anos de nascimento do seu pai e da sua mãe. Emocionou-se muito quando provou o vinho da idade da mãe, e mergulhou nele o lenço, para que, de volta aos EUA, ela pudesse cheirá-lo, já que não era possível bebê-lo.

A relação mantém-se?
Continuo a achar que é um dos grandes enólogos do mundo. Estive com ele lá na Califórnia em 2005 e somos bons amigos, comunicamos muito.

O vinho é uma ciência?
Tem uma componente científica, sem dúvida, mas tem muito a ver também com a sensibilidade.

O seu filho mais novo seguiu os seus passos.
Ele sempre teve uma queda grande para a enologia e acho que hoje é um bom enólogo, com autonomia e assinatura já vincada nalguns dos seus vinhos.


Os primeiros clientes

Pode considerar-se a Herdade de Coelheiros como o seu projecto inicial enquanto consultor?
Em 6 de Abril de 1992, abracei com o senhor Joaquim Silveira o projecto da Tapada de Coelheiros. Foi o primeiro projecto de raiz que eu fiz no Alentejo. É fundador e estruturante tanto na minha carreira como também no próprio historial do vinho alentejano.

Foi bastante inovador.
Dizia-se que era impossível fazer um bom chardonnay no Alentejo, mas nós conseguimos. O Sr. Silveira era um grande conhecedor dos grandes vinhos do mundo e queria para os seus tintos um perfil de Bordéus, para os brancos o de Borgonha. Tinha, além disso, uma colecção muito grande.

Diz-se que Coelheiros foi o primeiro “château” do Alentejo
O que me foi pedido foi que fizesse um vinho no Alentejo, mas que não tivesse nada a ver com os vinhos que se faziam no Alentejo. Plantámos castas estrangeiras e fizemos os vinhos seguindo técnicas radicalmente diferentes das praticadas na região.

A Cooperativa de Granja é, no entanto, um projecto mais antigo.
Em 1978, a JMF comprava uvas em várias partes do país e conheci o eng. José Leal Segurado, a pedido de António Soares Franco, porque pretendia vender-nos uvas da sua produção. Havia, Moreto Preto, Alfrocheiro, Trincadeira, etc, tudo de qualidade muito boa. Ele estava ligado à Cooperativa Agrícola de Granja e logo que passou a tomar conta da cooperativa, em 1982, convidou-me para trabalhar com eles enquanto enólogo consultor. Comecei em 28 de Abril de 1982.

Nasceu uma marca que viria a ser campeã mundial.
Criámos uma marca, Terras do Suão, com muito êxito. O primeiro engarrafamento acontecu em 1982 e foi o primeiro vinho alentejano a ter estágio em barrica. Não havia nenhum grande restaurante que não tivesse o vinho.

Foi esse o vinho que o ligou a Joaquim Silveira?

Sim. Ele conheceu o vinho no Gambrinus, onde ia almoçar à sexta-feira. O escanção Francisco Gonçalves deu-lhe o vinho a provar e logo ele se pôs em contacto comigo.

O que distinguia esse vinho dos outros?
Esse vinho era muito especial, era o resultado de uma escolha exaustiva dos vinhos produzidos a partir de talhões muito específicos.

Nasceu assim uma relação verdadeiramente estruturante.
Foi a pessoa que mais valorizou até hoje o meu trabalho. Foi sempre um grande amigo, transmitindo-me uma confiança sem limites.

Quem eram os seus colegas de profissão na altura?
No Alentejo, lembro-me perfeitamente de João Portugal Ramos, que sempre achei que iria muito longe e não me enganei. O professor Colaço do Rosário. Mais tarde, Paulo Laureano, João Melícias, António Ventura, Luís Duarte, Pedro Baptista Rui Reguinga e outros, todos com talentos invulgares.

Mantém boas relações com todos?
Infelizmente o professor Colaço do Rosário já não está entre nós, mas a verdade é que eu tenho boas relações com todos os meus colegas de profissão.

Em sua casa, vive-se o vinho?
O meu filho Nuno gosta e prova bem. Seguiu o curso de farmácia, e tem tido muito sucesso. O António fez o ISA e seguiu enologia, tem um gosto requintado e interessa-se por conhecer. Está de resto a fazer vinhos muito interessantes.

Gosta dos vinhos que o seu filho faz?
Gosto. E reconheço neles uma mesma forma de viver e conceber o vinho. Temos muitos pontos em comum.

A família é um grande apoio.
A minha mulher foi a mãe e pai dos meus filhos, ao longo de períodos em que eu, por força da profissão, não conseguia estar muito tempo em casa.

Começou um projecto no Brasil
Sim, e estou bastante entusiasmado com ele. Ainda está no início, mas creio ter um futuro brilhante.

Entretanto, tornou-se produtor de vinho.
Quando eu estive na Califórnia, deparei com essa realidade. É normal, quando os enólogos atingem determinado estatuto, darem o passo da autonomização. Há alturas na vida em que temos de tomar as nossas opções. A certa altura, quis criar os meus próprios vinhos, até já a pensar no meu filho, que entretanto já tinha terminado a sua licenciatura.

E tem sido dedicado à sua região.
Sim, muito. Gostava que os vinhos da Península de Setúbal gozassem da reputação das nossas outras regiões de topo. E temos muitas possibilidades de conseguir isso.

O Alentejo também tem estado na agenda.
Sim e penso que estou a fazer vinhos novos, propostas também novas. Caso do Porto da Bouga e do Dúvida.

Os moscatéis continuam a apaixoná-lo?
Os grandes moscatéis do mundo ainda são os de Setúbal. Tenho consciência de que os melhores de todos estão na José Maria da Fonseca, mas tenho produzido vinhos com a minha assinatura em que acredito muito.

domingo, 17 de agosto de 2014

Um nepalês que é nosso

Tanka Sapkota é o proprietário e chef do restaurante italiano Come Prima, em Lisboa. Lutador de fundo com uma invulgar veia criativa e uma força capaz de mover o mundo, oferece todos os dias o melhor que sabe, e sabe muito. Nasceu no Nepal mas é português de coração, dizemos nós.

Movimenta-se como um bailarino por entre as fiadas irregulares de mesas, cadeiras e frapés que pontuam o que é um dos melhores restaurantes italianos de Lisboa. De vez em quando desaparece para dentro da cozinha ou vai fazer uma qualquer operação no forno de lenha que marca logo quem entra no seu restaurante. Depois sai que nem um foguete, escada cima, degraus dois a dois, para atender a alguém que pediu uma boa grappa para terminar a refeição em beleza. Seja onde for, Tanka Sapkota aparece de repente, com um sorriso impossível de desmontar, os olhos de uma criança que recebe o brinquedo com que sonhava. A casa é a Come Prima, que vagamente quer dizer "como dantes". Menos vagas são as vozes de Marino Marini, Domenico Modugno ou Mario Lanza que mesmo sem soar no sistema de som nos namoram insistentes até ao fim da refeição. Além da agora óbvia "Come Prima", canções como Quando Quando Quando, Guarda che Luna, e Volare, compõem um imenso repertório do final dos anos 50 que espantosamente nos chegou intacto, mesmo no tempo em que o país não dava propriamente as boas vindas ao estrangeiro. Canções eternas que gritam Itália, paixão, toalhas aos quadrados e que fazem de qualquer massa "aglio e olio" parecer iguaria dos deuses. Sapkota é cuidadoso neste aspecto, não impõe aos seus clientes habituais o suplício de ouvir sempre as mesmas músicas quando escolhem a sua casa para comer. Nos dias especiais é ao contrário, então celebra-se bem a vida neste recanto lisboeta da Pampulha, perto das Janelas Verdes. Foi especial o passado dia 5 de Junho de 2014. Tão especial que que se ouvia "Come Prima" cantado e tocado ao vivo através de todo o restaurante. Sapkota estava em festa, com a atribuição do diploma de "La Verace Pizza Napolitana", certificando as pizzas como autênticas e verdadeiras, feitas ao estilo napolitano. Massa, ingredientes e assadura, tudo a preceito, como mandam as regras. A sua mulher Rita oficia diariamente no Come Prima ao lado do marido e naquele dia estavam também a filha Anjali (8 anos) e o filho Adarsha Pratik (6 anos) estavam ali a viver a festa e a vitória. Cerca de 18 anos depois do seu primeiro emprego em Portugal, Tanka - Giovanni, nome italiano que a certa altura da vida adoptou - tem um palmarés notável e um percurso de que pode estar orgulhoso. Especial entre especiais.

A 13 mil quilómetros do berço

Tanka Sapkota nasceu em Damek, no Nepal, no dia 15 de Janeiro de 1974. Tanto a sua mãe, Kalawati (67 anos), como o seu pai, Jaguputi (86 anos) estão ainda vivos, tiveram quatro filhos; Tanka é o segundo mais novo, mesmo assim 8 anos mais velho do que o benjamim, Yogesh. Este último também está radicado em Portugal e gere a Casa Nepalesa, restaurante étnico de sucesso e qualidade assinaláveis. A sua infância foi feliz, numa paz que considera total. O nosso homem é hindu, mas tem grande admiração pela figura e talante de Siddartha, o príncipe-Buda, também ele nascido no Nepal, em Lumbini, cerca de seis séculos antes de Cristo. "No Nepal vivemos lado a lado, hindus e budistas, em total tolerância", explica. É verdade que sempre que se pergunta a alguém onde nasceu Buda, a maioria responde China, outros Índia, mas quase ninguém Nepal, terra de prodígios, onde o próprio cristianismo pode ter ido buscar muitos dos seus fundamentos. Certo é que não foi em fuga que Tanka decidiu partir para a Alemanha. Havia qualquer coisa dentro que o desinstalava, desde 1992 pelo menos, altura em que abandonou os estudos de Direito, que o seu coração o levava à moção repetida de sair donde estava. Em Stuttgart foi ter com um italiano amigo de seu pai. Rapazinho de 18 anos apenas, queria trabalhar e, perante o ultimato do irmão mais velho, decidiu abandonar a universidade e tentar a sorte na Europa, junto de um homem que de certa forma, foi como um pai. Estudou alemão e teve o primeiro contacto com a cozinha italiana, começando, como nos filmes, a lavar pratos num restaurante. Um dia pôs a mão na massa e percebeu que conseguia fazer dela qualquer coisa, com bons resultados. Em três tempos, estava feito um verdadeiro pizzaiolo.
Quis o destino e a necessidade de regularizar a sua situação que veio até Lisboa em 1996. Chegou e gostou do que viu, parecia-lhe ser lugar onde podia ser feliz e criar raízes. Conseguiu emprego no restaurante Trattoria assim que perceberem que ele dominava o segredo das pizzas e sabia fazê-las à mão. Por ali ficou por três anos de trabalho intenso, sem intervalos, mas sentia-se realizado; o seu esforço era reconhecido a admirado. Em 1998 teve de ir até ao Nepal para o casamento do seu irmão e Cupido fez das suas. A irmã da noiva, Sita - ou Rita - fê-lo  regressar apaixonado para Portugal. Começou a sua vida de herói em Lisboa, acabando por abrir o seu primeiro restaurante em Outubro de 1999, o Bella Italia. Definitivamente, Lisboa era a sua cidade e parte dela era sua, dado o grande êxito da sua primeira ventura empresarial.

Instalar o amor e o ofício

O tempo dos casamentos combinados já tinha então passado, mas Tanka Sapkota - Giovanni - foi sempre pessoa de princípios. Timidamente começou uma troca de cartas com Rita, tentando encurtar a enorme distância, quase meio mundo, a que se encontravam. Foi plenamente correspondido e a intenção de casar não se fez esperar, mas para os seus pais Rita era ainda demasiado jovem para casar. Esperaram, assentes mais e mais na troca epistolar, até que vem o sinal positivo. Casaram no Nepal em 2002, um ano depois de se mudar para o Come Prima, no local onde ainda hoje se encontra. Para se aperfeiçoar, escolheu Itália, primeiro um pequeno estágio no Tripini, em Orvieto, depois um mês e meio no Gambero Rosso, em Bari. Deu-se a inflexão profissional que Giovanni sabia que tinha de acontecer, passando a dedicar-se ao receituário clássico italiano e à cozinha mais elaborada de matriz mediterrânica. 2009 é por isso o ano da autonomização definitiva do chef Sapkota, permitindo-se chamar verdadeiramente seus aos pratos que oferece no Come Prima. O que hoje se chama cozinha de autor.
No tempo da trufa branca de Alba, entre Outubro e Janeiro de cada ano, ano após ano recebe o produto na sua cozinha, que processa como ninguém. No passado houve alguns cozinheiros que ousaram propor menus de trufa branca, mas hoje apenas Tanka "Giovanni" Sapkota tem uma oferta consistente, com que podemos contar.
Antes da certificação - mero pro forma a que o cozinheiro quis atender - já Sapkota tinha todo um trabalho de ensaios com farinhas, produzindo por exemplo fermento natural, para melhorar a qualidade das suas pizzas. Está a desenvolver neste momento um trabalho de grande valor, com produtos tradicionais portugueses, em busca da frescura e combinações únicas que a nossa cozinha consegue oferecer. E está com a ideia fixa de plantar um olival com as nossas variedades... no Nepal. Quer produzir azeite na sua terra natal e está convicto de que vai conseguir. Alguém se atreve a duvidar?

(Notícias Magazine #1160, de 14.Ago.17)


domingo, 6 de julho de 2014

Caril, especiaria de especiarias

Súmula de vários ingredientes, quase conta a história de famílias, gerações e regiões de todo o mundo. Utilizamo-la nalguns pratos, contudo, sem nos darmos conta da diversidade de escolha que existe e do potencial de harmonização vínica que comporta.

Talvez já seja tarde demais. O mundo está a utilizá-lo há décadas como ingrediente directo, como se colhido de uma árvore ou arbusto de paragens exóticas, depois processado artesanal ou industrialmente. A comprá-lo em regime de utilidade e preço, sem considerações de origem nem pureza. O caril perdeu a sua matriz identitária, quando enquanto mistura de especiarias pode e deve reflectir desde uma história familiar até um legado cultural. Os cultores da boa comida e das experiências ditas gourmet são normalmente defensores da diversidade, o que força a abordagem importante das raízes e da proximidade. É por isso importante que todos, iniciados ou não, integrem o caril nos seus léxicos, com a consciência de que é sempre um lote de especiarias que compõe cada um. O trabalho de harmonização com vinhos depende muito da mistura em causa, pelo que se impõe um pequeno périplo pelos ingredientes mais frequentes e dominantes. Gostamos deles individualmente, mas em conjunto transformam uma galinha velha num prato divino, criam novas dimensões de prazer na cozinha vegetariana e são uma plataforma inesgotável de experimentação com partes aparentemente inconciliáveis.

As especiarias e o tempero

Há componentes mais notórios e dominantes do que outros, num caril. Começamos pelo açafrão, que é a especiaria mais cara do mundo e uma das mais trabalhosas de obter. Já foi mais valiosa que o próprio ouro, e é ainda hoje muitas vezes referido como "ouro vermelho". O açafrão verdadeiro são os três estigmas da flor Crocus Sativus e apresenta um sabor agridoce, combinado com cheiro a mel. Marca muito qualquer conjunto, pelo que se utiliza uma pequena porção. São precisas mais de 100 mil flores para produzir um quilo de açafrão. Apesar de estar disseminado por todo o mundo e na Índia ter particular importância, tem-se como certo que a disseminação se deu pela mão dos romanos, do Mediterrâneo Norte e Oriente. Segue-se em valor económico o cardamomo, nas variantes verde, preto e Madagascar. É um dos mais notáveis sabores da cozinha indiana e a sua proveniência é da grande bacia mediterrânica formada pelo médio-oriente e o norte de áfrica. A bebinca, sobremesa pacientemente feita em camadas é impossível sem o cardamomo, por exemplo. Sabor balsâmico, com notas limonadas muito fortes, constitui um vector de frescura em qualquer mistura de caril. As sementes de coentros são porventura a terceira especiaria a considerar. Em Portugal relacionamo-nos sobretudo com as folhas frescas de coentros, para temperar saladas ou finalizar pratos. Curiosamente, em Israel há exactamente o mesmo costume, mas não é disso que estamos agora a falar. As sementes são pequenas esferas, com sabor suave e adamado, num fundo às vezes evocativo da raspa de laranja. De novo, a frescura do conjunto a sair beneficiada. Da Índia e China vem a utilização sistemática da raiz de gengibre. Seca e moída, tem honras de Confúcio e Corão, pelo poder purificador e salvífico que traz consigo. Foi ao longo de mais de 2 mil anos base da medicina chinesa e generalizou-se até aos nossos tempos no ocidente o polvilhar de bebidas, carnes cruas, arrozes, caldos e sopas. Foi, já agora, assim que nascei a "ginger ale" em Inglaterra; as pessoas deitavam um pouco de pó de gengibre. É um ingrediente que raramente falha num "mix" de caril e é uma das fontes de intensidade, por vezes até picante. Os cominhos também são parte importante da mistura exótica e além de nossos conhecidos - há poucos enchidos que os não tenham, por exemplo - tiveram ao longo de milhares de anos um papel muito importante na medicina, alimentação e até economia, já que foram outrora moeda. No caril são ingrediente discreto mas fundador, a sua utilização na cozinha foi celebrada por gregos e romanos e asseguram harmonia em pratos de cozedura longa. A noz-moscada é uma semente de dimensões generosas, dura, e de utilização quotidiana, por exemplo para finalizar um puré de batata. O seu gosto ligeiramente adocicado mas ao mesmo tempo balsâmico torna-a praticamente numa especiaria multiusos. No topo da complexidade está a pimenta-da-jamaica, quase uma corporização colectiva de noz-moscada, cravinho, gengibre e canela. Fortemente aromática e inconfundível, esta especiaria está na alma do caril e é ligeiramente picante. Também pode ser um pouco picante o pimentão, ou paprica. Por cá utilizamo-lo de forma moderada, mas os espanhóis põem-no em quase tudo, cru, cozido ou assado. É interessante a sua transformação em pratos de tacho ou fritos e, tal como o açafrão, dá uma coloração vermelha inconfundível à comida. Existe em diversos graus de "dureza" picante. Finalmente, o alecrim em pó faz a diferença entre estilos e sabores de caril. Fica provado que só mesmo quem não resiste a simplificar é que pode ver no caril uma coisa simples. E fica também o desafio de começar a olhar para a lista de ingredientes de cada caril de compra, mais que não seja para constatar a sua enorme diversidade.

Os muitos modos de usar

Apesar da grande diversidade e adaptação às diferentes regiões e etnias do mundo, há um elemento permanente a acompanhar todos os caris: o arroz. Normalmente da cariedade basmati e aromatizado apenas com um dente de cravinho. O caril mais comum entre nós é o goês, que se baseia no côco fresco para atingir o seu sabor típico. As proteínas mais frequentes são o camarão e a galinha - nunca em simultâneo, claro - e o grau de picante fica ao gosto da pessoa, sendo que em Gôa nunca foi grande apanágio. Nas outras províncias indianas, na Tailândia e no Nepal é que temos de nos precaver, porque o moderamente picante é letal para a nossa bitola normal.
Faça as suas próprias experiências, contactando um bom negociante de especiarias, e atreva-se a compor o seu caril. Casas como a Leitão Oliveira (Tel. 218 877 576) podem dar bons conselhos para chegar a bom porto. Na perspectiva culinária estrita e com a canícula a aproximar-se, não deixe de experimentar fazer uma salada carilada de lingueirão - ou outro marisco - para comer à colherada no regresso da praia. Nas suas próximas batatas cozidas, experimente dar-lhes um "banho" suave de caril para servir com peixe grelhado. Sobretudo, experimente sempre fazer coisas novas. Vai conquistar uma nova forma de olhar para o caril.


terça-feira, 20 de maio de 2014

Algumas coisas sobre citrinos

Citrinos

Sabem, cheiram e transpiram frescura. Usamo-los na forma completa enquanto frutos, às rodelas de corte mais ou menos sofisticado servem para decorar pratos e embelezar mesas. E são talvez o ingrediente mais discreto de toda a cozinha.

Todos os dias passamos, tocamos, transformamos ou consumimos um citrino. A Vitamina C – ácido ascórbico - dispensa apresentações, fazendo parte da vida em todas as idades e estados como qualquer coisa que nos defende dos males que por aí andam. Na cozinha portuguesa, incluindo a doçaria, os citrinos são praticamente indispensáveis, desde o sumo até à raspa, feitos espécie de contrapeso de tudo o que é gordura indesejável, bem como catalisador de sabor, frescura e amaciamento de peixes, carnes e legumes. Pertencem, todos eles, ao género Citrus da grande família das Rutáceas. Só o Citrus gerou, ao longo do longo tempo em que medrou sem qualquer domesticação – mais de 4 mil anos – 930 espécies. Todas de folha e flor odorosa, fruto de vidrado exterior colorido, polpa intensa e sumarenta, genialmente confinada e maturada em bolsas compactas e contíguas a que chamamos gomos, semente pequena, em certas espécies mesmo ausente. Tem-se hoje a certeza quanto à origem dos citrinos, fixando-se na Índia, Sul da China e Indochina; resumidamente, na Ásia tropical e subtropical. Pois é, uma das glórias do sabor e culinária mediterrânicos foi toda importada. Mas não foi de qualquer maneira, primeiro foi para o Norte de África, subindo depois para o Sul da Europa. Com o Mediterrâneo de permeio, oscilou por ali em modo latente. Os árabes chamam ainda hoje “naranj” à laranja amarga e “portukal” à variante doce, o que nos enche o ego a nós, portugueses. Não temos, contudo, que nutrir narcisismos semi-providenciais, infelizmente parece que o nome vem do grego “portokallos”. Podemos, por outro lado, encher o peito com as espécies que podemos considerar nossas. São elas a já evocada laranja – “citrus sinensis” -, a tangerina – “citrus reticulata, citrus deliciosa e citrus unshiu” – e o limão – citrus limon. Importantes na mesa são ainda a toranja – “citrus paradisi” – e a lima – “citrus latifolia”. O assalto às Américas deu-se nas Descobertas, no início do Sec. XVI, e talvez tenham sido apenas os espanhóis os facilitadores do prodígio que foi o bem que se deu por ali tudo o que era citrino. É que para que o fruto saia belíssimo basta que a temperatura esteja na janela entre os 12 e os 38 graus centígrados no momento do seu desenvolvimento. O frio mata a árvore, o excesso de água tira-lhe virtude e o vento pode ter efeitos tenebrosos no fruto, como por exemplo incrustação de areias ou mesmo o seu arranque. É signo de carga divina para os judeus, na Festa dos Tabernáculos, ou Tendas, que se segue ao Yom Kipur, por altura das colheitas em Israel. Imagina-se que por simpatia de aroma com a folha do cedro que se usa alternadamente, o rabino ostenta um grande limão da espécie iemanita, que não tem polpa, agradecendo a abundância para mais um ano. Ao contrário do que já li, Lima, capital do Perú, não vem do fruto com o mesmo nome, mas até podia vir, porque foi estabelecida em 1535, com nome imposto pelos espanhóis. O nome vem do rio Rimaq, que os nativos diziam Limaq, passando depois a Lima. Mas isto, citando Gago Coutinho num famoso escrito que nos deixou sobre a Teoria da Relatividade, pouco ou nada influencia o nosso quotidiano.

A gota

Por muito que se altere ou tecnicalize a arte de escrever receitas, sempre parecerão mais transmissão oral lavrada em papel do que trabalhos científicos. Quando não forem, deixarão de ser receitas. E sempre, quando processadas em terras distantes da nossa nos sairão diferentes os pratos que sempre fizemos nas nossas cozinhas. Azeite, sal e ervas serão então grande parte da explicação, mas poucas vezes se pensará sobre o limão, por exemplo. E a verdade é que, apesar de estar em segunda linha na nobreza dos ingredientes, faz toda a diferença.
A gota é uma unidade de medida extraordinária, que no fundo não o é. Tudo depende da mão e da bondade com que se lê ou ouve a receita. Quem não sabe que umas gotas de limão preservam a vitalidade da fruta descascada e cortada? Regamos uma salada de fruta com algumas gotas de limão, mexemos e mantemos o festival colorido da taça onde a servimos. Agora passou apenas a condimento servido ao lado das ostras, mas o limão que acompanhava as ditas ao natural, portanto cruas e vivas servia para fazer contrair a membrana que envolve a ostra, confirmando a aptidão ao consumo. As amêijoas da receita de Bulhão Pato precisam das gotas de limão no final para atingir o zénite do sabor. Na verdade, aqui até passamos das gotas para o sumo, se as queremos intensas à mesa. Ao marisco ao natural, as gotas certas põem-no a cantar!

O sumo

Sumo de limão, lima, toranja ou laranja, seja de “meio” ou “inteiro” fruto, aplica-se em muitas preparações e receitas, sólidas e líquidas. A lima tem uma casca muito fina e um sumo abundante e está na base do célebre ceviche, prato de excelência da cozinha peruana. Faz-se normalmente migando o peixe crú com uma faca, impondo-lhe depois a marinada. A estrutura da proteína é quebrada por efeito do ácido cítrico, resultando numa conserva relativamente estável. Não é cozinhar mas quase e o resultado é sápido. O resultado é como tudo em cozinha, há que respeitar o tanto quanto. Agora que a canícula está finalmente aí, o sumo de lima, misturado com açúcar e cachaça dá uma das bebidas mais populares do tempo estival: a caipirinha. O nome fixa-a no interior do brasileiro estado de São Paulo, e existe na versão de caipirosca Dava-se aos escravos a aguardente de cana, misturada com sumo de citrinos. Em Cabo Verde, donde muitos terão vindo para o Brasil, há ainda hoje uma bebida semelhante que se prepara com grogue, uma espécie de rum mais pesado. Outra bebida que nos entrou no goto é o mazagran. Uma chávena de café bem forte, um cálice de rum – que quase ninguém põe -, sumo de meio limão, 3 colheres de sopa de açúcar, depois tudo para um jarro que se atesta com gelo, evoca a mediterrânica terra argelina do mesmo nome. É uma bebida que mata a sede como poucas.

A rodela

Lima, limão e toranja prestam-se ao corte em rodelas, fatias de espessura variável cortadas perpendicularmente ao eixo principal do fruto, com aplicações diversas. Há um costume inglês intrigante, que consiste em colocar uma finíssima rodela de limão ou laranja na chávena de chá quente. Por menos nasceu o “iced tea” – chá gelado -, consta que por aflição de um negociante inglês de chás indianos nos EUA. Face ao calor que de repente fazia, decidiu mandar encher copos de cubos de gelo e depois servir o chá por cima com a competente rodela de limão, fazendo sucesso. Nós temos automaticamente simpatia por rodelas de citrinos no prato, e mesmo num bife somos capazes de com um ou dois golpes de garfo extrair o sumo necessário para equilibrar ou intensificar o sabor. Talvez a rodela de laranja que é proverbialmente servida com o leitão assado à Bairrada tenha também a missão de compensar a eventual gordura presente. Confesso que não sou grande fã, mas como também não concordo com o “molho” que é servido ao lado, penso que não tenho voto na matéria. Quando o leitão é de má qualidade, não há molho nem laranja que o salvem e quando é bom é uma experiência gloriosa. Mas quando ingerida no final da empreitada, a laranja tem contudo um efeito regenerador interessante. Assim como é interessante o efeito de uma rodela de limão numa água com gás, água tónica ou mesmo numa cola, neste último reduzindo a percepção do açúcar presente.

A raspa

A matéria branca que existe entre o vidrado e a polpa de um citrino é incomestível e não se deve utilizar. A sua digestão é difícil e adultera os sabores dos cozinhados, tornando-os acres e desagradáveis. Já a fina película da casca a que acabei de chamar vidrado mas que conhece diversas outras designações, é um ingrediente muito especial. Quando no receituário é mencionada uma casca de um citrino, é dessa fina camada exterior que se fala. Quem tem um ralador em casa e nunca raspou laranja ou limão para dentro de uma salada fria não sabe o que perde, em termos de poder refrescante. Tratar o frango em crú com gengibre e raspa de limão na meia hora que antecede a cozedura é outra experiência a fazer, mesmo que o destino seja a integração num molho de natas ou um fricassé. O pudim do Abade de Priscos pressupõe sempre a calda a reduzir até ao ponto de estrada ou espadana, consoante o gosto pessoal, com a casca de um limão cortada muito finamente. O próprio leite-creme gosta muito de um ou dois pedacitos de vidrado de limão enquanto coze. Antes de arrefecer, há que retirá-lo. O resultado é uma sobremesa equilibrada de que não há criança que não goste.

Culinária farta e diversa

Na forma de gotas, sumo, rodelas ou raspas, os citrinos já estão eternizados, em todas as cozinhas do mundo. Moçambique preservou uma receita que está hoje banalizada mas na qual é fundamental perceber a importância do limão. É a cafriela de frango e vive de um preparado que é feito com sumo de um limão grande, 3 dentes de alho, uma malagueta, e uma mão-cheia de sal. Vai tudo ao almofariz sem esmagar demais. Integra-se depois 125 g de manteiga, que se bate com o conteúdo do almofariz. Esfrega-se o frango por dentro e por fora com o preparado e deixa-se repousar duas horas. Depois só pede grelha e atenção, para se ir regando com o que vai escorrendo da cozedura. Na cafriela, aferem-se o poder do tempero e a capacidade de transformação do limão e a sua “arte” em saber esconder-se por detrás de sabores mais dominantes. Outra demonstração desse poder discreto do limão é o chamado frango maricas. Pica-se um limão inteiro com o garfo, que se coloca dentro do frango, fechando-o com agulha e linha. Coloca-se em travessa de ir ao forno com vinho branco um pouco de caldo de aves, temperando-se de sal e especiarias a gosto. Rega-se com azeite, vai a assar e quase sozinho faz-se pitéu. Esta é uma solução muito boa para quem tem pouco tempo. O exsudado do limão garante a sua hidratação à medida que a cozedura vai avançando. Quanto mais se for regando, mais apurado vai ficando o molho. Com um frango do campo é que o resultado é óptimo, apenas havendo que atender ao tempo maior de cozedura que há que lhe dar.
É inevitável a referência ao pato com laranja, o mesmo que se tem como clássico da cozinha francesa. É interessante, porque afinal parece que foi uma receita importada da italiana Toscana, por efeito do casamento de uma Médicis com o rei de França. Toque mediterrânico, portanto, na aristocrática receita. Precisa, para pontificar, de laranjas amargas (“citrus aurantium”), o que nem sempre é possível. Há um molho francês, “bigarade” que é produzido com o vidrado das ditas laranjas cortado em juliana fininha, depois reduzido no sumo delas. O pato com laranja está na base deste molho, já que ele pode produzir-se sem mais, sempre com o pato em processamento. Socorro-me do “Livro do Mestre João Ribeiro”, da Assírio e Alvim, com textos trabalhados por José Labaredas e José Quitério, para o demonstrar: “O pato já deve estar limpo de intestinos e bem chamuscado para lhe sair toda a penugem. Cortar em 8 bocados. À parte, fazer um bom refogado com manteiga, um pouco de azeite, 1 cebola e 2 dentes de alho, tudo picado; depois juntar o pato ao refogado, pôr pimenta, um pouco de vinho branco, 2 dl de caldo de carne ou água e deixar refogar a fogo brando durante uns 20 minutos. Quanto estiver quase cozido, juntar sumo de 2 laranjas. As cascas cortam-se em juliana. Juntar ao pato um pouco de licor Curaçao. Se estiver um molho fino, engrossar com um bocadinho de maizena ou fécula de batata dissolvida em vinho do Porto. Servir enfeitado com gomos de laranja sem peles”.

Cafriela de Frango

Prato de mil estórias

Os valentes e bravos portugueses – e também absolutamente necessitados – que descobriram e se disseminaram por terras longínquas chamam muitas vezes a si a autoria do que não lhes é devido. Muitas vezes, enquanto observadores atentos dos usos e costumes dos povos que foram encontrando em modo de descoberta, mais não faziam do que importar instantaneamente palavras baseadas em sons e expressões locais. “Cafr” era, no sueste do continente africano, o nome que os mouros davam aos difíceis e tesos indígenas que se recusavam a aceitar a lógica de salvação da religião muçulmana. Em vez disso, prosseguiam com os seus cultos e rituais próprios, tidos como idólatras, com as consequentes perseguição e punição. Os relatos da época da colonização portuguesa da África Austral referem chamam “cafres” aos mesmos nativos, e “cafrarias” às suas comunidades. Designação que no continente depressa se passou a utilizar para referir todos os que não eram cristãos. Inácio Steinhardt, judeu português hoje radicado em Israel, deposita no seu blog - steinhardts.blogspot.com – inefáveis abordagens à origem de certas palavras e expressões, estabelecendo pontes históricas com um tempo e dedicação dignos de nota. Descobriu então que Alexandre Herculano terá encontrado na Bilioteca da Ajuda um documento onde eram referidos “os sete cafres contumazes”, rabinos judeus encarcerados por ordem de D. Manuel até que se convertessem ao cristianismo “de sua própria vontade”. Apesar do atractivo da liberdade, tal não veio a acontecer. Quando convicção e redenção entram no material genético do homem, dificilmente verga. Já “cofêr”, palavra hebraica que segundo Steinhardt tem a mesma origem de cafre, é aquele que renega os princípios de uma religião. Tudo converge, afinal.
Cafreal é tudo o que é relativo ao cafre e à cafraria. No receituário da Guiné e de Moçambique, passou a cafriela, a forma de cozinhar com manteiga – ou azeite - e limão. Umas vezes grelhado e depois estufado, outras apenas grelhado, o frango recebe com esta técnica estatuto nobre e rico. Associamo-lo, pelo que atrás se disse, mais a Moçambique que à Guiné e é prato tanto popular como histórico entre os moçambicanos. Chamam-lhe, muitas vezes, “frango de churrasco à cafreal”. O nome certo é cafriela de frango e o sabor, mesmo quando o frango é servido bem quente, inspira sempre frescura, o que explica o catembe – espécie de “traçadinho” de vinho tinto carrascão com refrigerante – que tradicionalmente era utilizado pelos locais.
A escolha do vinho para acompanhar a cafriela de frango recai por exemplo no Catarina 2007 (cerca de 5 Euros), vinho branco Terras do Sado produzido pela Bacalhôa Vinhos. È uma homenagem a Dona Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra e Princesa de Portugal e a todas as Catarinas, como consta do contra-rótulo deste vinho, produzido a partir da localíssima casta Fernão Pires e da internacional Chardonnay. A fermentação parcial do vinho em carvalho francês complementou com complexidade e profundidade as suas notas citrinas e tropicais, tornando-o boa companhia para esta cafriela.

sábado, 15 de março de 2014

Deixem entrar as alcachofras



Lulas maravilhosas, graças à assessoria de um produto que insistimos em não considerar nosso! Muito está ainda por descubrir nestes terrenos.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Um Algarve para (re)descobrir

Entre os tempos idos da grande glória dos vinhos de Lagoa que o mundo conheceu e os de hoje medeou um tempo de transformação e gestação que criou um novo futuro para o Algarve. No que é talvez o único clima mediterrânico que Portugal tem, há hoje pessoas, vinhas e vinhos que é fundamental conhecer.

Conta com quatro denominações de origem controlada (DOC) - Lagoa, Lagos, Portimão e Tavira - mas é na Indicação Geográfica (IG) Algarve que o nosso território continental mais a sul tem vindo a congregar mais produtores, estilos e tendências. Tem sobretudo a ver com razões comerciais, mas exprime também um sentimento de orgulho algarvio que é inteiramente merecido. Tanto quanto desconhecido. A trajectória que tem vindo a calcorrear é num certo sentido semelhante à da Madeira, que desde o final dos anos 80 experimentou as castas mais diversas nos seus diferentes terroirs (solos e climas) para chegar aos vinhos madeirenses que hoje podemos provar nas mesas da ilha. O Algarve clamava desde há muito por talentos e investidores que fizessem jus ao tesouro que comporta nos seus solos. E como são variados! Argilosos, calcáreos, arenosos e até xistosos, disponibilizam um autêntico berço de ouro para novas vinhas e, claro, para vinhos originais. Quanto a castas, nos brancos encontramos hoje desde as mediáticas Chardonnay, Riesling, Sauvignon Blanc, Síria, Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Viognier até às de muitos desconhecidas Diegalves, Malvasia-Rei, Manteúdo, Tamarez e Tália, marcando uma diferença importante em relação ao resto do país. Nos tintos, o mesmo cenário. Alfrocheiro, Baga, Bastardo, Moreto e todas as durienses mais utilizadas marcam as castas mais conhecidas e depois temos Monvedro, Negra-Mole, Pau-Ferro e Pexem a marcar o território mais nebuloso, mesmo para os que se interessam por vinho. O leque de umas e outras é bem mais vasto, o que diz já da diversidade que a Comissão Vitivinícola do Algarve (CVA), sabia e estoicamente dirigida por Carlos Gracias, pretende fomentar. O incremento da quantidade também é desejável, desde que acompanhada da indispensável qualidade. O Algarve produz actualmente cerca de 2,5 milhões de litros de vinho, dos quais apenas 15% é branco. Esta é a primeira perplexidade, face a um território que consome, serve e vende peixe e marisco da melhor qualidade. Em termos de categorias, a IGP Algarve representa cerca de metade dos vinhos certificados, contra as quatro DOP já apontadas, que juntas rondam os 15% da região. Isto ocorre em parte porque a designação - evanescente da categoria Regional Algarve - permite mais liberdade nas castas utilizadas. Estão bastantes enólogos de primeira linha a trabalhar o perfil dos vinhos algarvios, como por exemplo Paulo Laureano, João Póvoa, António Maçanita e Mário Andrade. E todos os que se aproximam da região ficam com vontade de trabalhar o glorioso produto que cresce nos seus matizados solos vinhateiros. O vinho rosé - ou rosado - está em franca ascensão e a descolagem do vizinho Alentejo é definitiva. Falta talvez ainda resolver ou afinar a utilização da madeira no estágio dos vinhos. Hoje sabe-se que é mais amigo da boa companhia e da boa mesa o vinho equilibrado e elegante; a madeira só deve entrar tanto quanto ajude á longevidade e complexidade do vinho. Há contudo que respeitar e conhecer todo o património antigo dos vinhos algarvios, para então se avançar com o necessário conhecimento de causa. Esse é um papel repartido entre enólogos e proprietários, pois só com uma grande sintonia entre ambos se consegue produzir o vinho pretendido, ano após ano. É bom, por isso, que exprima intenção e saber-fazer, e é desses vinhos que a história vai falar. Afinal, está na forja o novo Algarve.

Fundamental fazer diferente

Joaquim Lopes e seu filho Tiago gerem hoje uma das mais excitantes marcas do vinho algarvio. Na Quinta do Outeiro, em Silves, criaram o Paxá. O termo data dos tempos do império otomano e significa "excelência", fazem questão de conta, acrescentando que era o título dos governadores de  província de então. O experimentado Mário Andrade é o responsável pela enologia da casa, ele próprio, tal como o proprietário, advogam que os bons vinhos começam a ser feitos na vinha. É relativamente pequena a vinha - 7,5 ha - e está dividida em cinco parcelas, correspondentes cada uma a sua casta, por sua vez vinificada individualmente. As brancas são Arinto e Alvarinho, as tintas Touriga Nacional, Aragonez, Syrah e Alicante Bouschet e os solos são argilo-calcários, uma combinação frequente no território algarvio. O Paxá XII é produzido a partir das três castas tintas disponíveis e é o topo de gama deste produtor. É um dos mais sofisticados títulos de todo o Algarve e a 24 Euros a garrafa há razões para ser mais conhecido. A marca Paxá, disponível em rosé, branco e tinto é a cerca de metade um convite irrecusável, e a entrada de gama "QO" a 5 euros coloca Joaquim Lopes entre os campeões da relação qualidade/preço. Para chegar aqui, contribuíram os mais de 30 anos de engenharia agrícola. Um dos pioneiros do vinho algarvio é João O'Neill Mendes que nas suas vinhas na Mexilhoeira Grande, em pleno barlavento, criou vinhos com uma frescura invulgar. Ganha prémios - os mais recentes com o Tapada da Torre licoroso branco e com o Alvor rosé - mas não repousa nunca sobre os louros; antes trabalha de forma sustentada e constante na melhoria dos seus néctares Uma pequena conversa com este criador de vinhos chega para perceber a sua boa intranquilidade. Os prémios mais recentes, por exemplo, aconteceram porque decidiu plantar um hectare de moscatel roxo; a mesma de Azeitão. Nas vinhas brancas, tem Síria, Arinto e Viognier e nas tintas Syrah (maioria), Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e Aragonez. Os títulos dos vinhos são três: Alvor - topo de gama -, Tapada da Torre e Foral de Albufeira. Para os lados do barlavento, em Tavira, está Quinta dos Correias, o único produtor com vinhos DOC Tavira. Orgulhosamente só, Ricardo Silva e Sousa fala da importância histórica da quinta desde há muito propriedade da sua família, onde os ingleses de Gribraltar outrora se abasteciam, ao mesmo tempo que faziam as delícias dos portugueses. A marca mais conhecida é a Fuzeta, um tinto de 5 Euros produzido a partir de Cabernet Sauvignon, Castelão e Aragonez que tem alguma expressão no Algarve mas que o resto do país praticamente desconhece. O mesmo perfil tem o Terras da Luz que a 7 Euros é uma homenagem à Freguesia da Luz-Tavira onde é produzido. Em Portimão, Maria Clara e Ana Sofia Pimentel apoiaram-se nos saberes dos enólogos Paulo Fonseca e Jorge Magalhães para criar a marca Herdade dos Pimentéis que rapidamente foi catapultada para os lugares cimeiros da província algarvia. Pelo menos em relação qualidade/preço distinguem-se claramente dos restantes. O Reserva tinto 2011 é vendido a 9 Euros  e é o topo de gama. Muito para escolher e provar, portanto.

Redescobrir o pato

Já não é assim que se vai aos patos, mas o imenso arsenal de ilustrações e fotografias de caça que diariamente encontramos faz-nos continuar a alimentar o imaginário do tiro e queda nas charcas ou lagos de manhã cedo.

O pato de consumo é normalmente uma ave de criação e o seu arsenal de ferramentas de adaptação original ao meio ambiente permanece no código genético da que é uma ave desejada pelos mais reputados cozinheiros mundiais. Carne vermelha e de textura macia, bem irrigada de sangue; camada adiposa copiosa, a envolver todo o corpo, com sabor particularmente rico; e atreita a vários tipos de cozedura; fazem do pato um dos mais flexíveis ingredientes na cozinha. A cozinha francesa dedica-lhe algumas das páginas mais nobres dos cardápios que sustenta, trabalhando-a normalmente mal passada. A chinesa apresenta pratos que constituem, só por si, passaportes para todas as partidas do mundo. Nós por cá também lhes fazemos as honras, pois então! Gostamos dele assado inteiro no forno, tostadinho e a certo ponto da nossa história demos-lhe o arroz. Arroz de pato e arroz com pato são pratos de assinatura bem portuguesa. A gordura de que falámos anteriormente é um aspecto importante de sabor e cozedura dos pequenos grãos, que a passagem pelo forno quente eleva ao estatuto de pajem, assessorando o rei patudo na perfeição.
Quando vamos às compras num supermercado, o cenário é hoje bastante diferente do de outrora, com o pato a ombrear já nos lineares com as carnes mais populares. O que encontrávamos fresco apenas nalguns dias de alguns talhos e congelado nas grandes superfícies, está hoje bem mais disponível, na variante fresca. Pequeno paraíso para quem se interessa pela diversidade em casa,  a começar nas pernas - ou coxas - disponíveis embaladas em vácuo, óptimas para confitar no forno ou ou num tacho, imersas em banha de pato. Ao fim de algumas horas está pronta a delícia, praticamente sem intervenção de sabores, marinadas nem temperos. Os magrets - ou peitos - existem já em consistências e dimensões diversas, e também se encontra fígados frescos de pato com relativa facilidade, a partir dos quais se pode construir molhos e recheios com muito sabor. Em jeito de prémio, encontra-se também nos escaparates gourmet o que abusivamente se chama presunto de pato, que na verdade são os magrets curados e embalados, apresentados reduzidos já a finas fatias, prontos a servir. A cozinha portuguesa tem desde sempre soluções para estes produtos que agora nos são propostos a preços atraentes. Finalmente, há que ir conferindo as mais valias do foie gras de pato, em preparados acessíveis e embalados. Não é tão subtil nos aromas e textura como o de ganso, mas tem normalmente muita personalidade, absorvendo bem os temperos e tratamentos que se lhe põem. Mãos à obra?


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Picante: sexy, viril... e humilhante!

Aguentar o picante mais picante é um jogo em que todos acabam por perder e ao mesmo tempo irresistível. Arruina o ambiente de um jantar romântico pelo que só quem está habituado deve atrever-se. Curiosamente, quando mais se experimenta mais se aguenta.

Dia dos namorados, os dois à mesa num restaurante indiano, tète-a-tète, mão na mão, na mesa ao lado servem um prato com malaguetas a um casalinho claramente habituado a estas andanças, deitando a mão a uma cada um. Sem perder o contacto visual, totalmente "in love", levam-nas à boca dando uma valente trincadela. É então que o representante masculino do primeiro par decide pedir também malaguetas, com a namorada a dizer-lhe cuidado que isso deve ser fortíssimo. Ele, com um sorriso já de meia vitória, super-confiante especialmente depois de ver a naturalidade com que os do lado cumpriram o programa, faz o mesmo. Ainda tem tempo para sorrir mas logo a seguir instala-se-lhe o inferno dentro. A língua parece sair pela cabeça e tocar no tecto e depois no chão, exactamente como nos desenhos animados que na infância o faziam soltar gargalhadas. Atira-se ao copo de água e é pior a emenda que o soneto. Então instala-se o desespero, até que os vizinhos improvisados vão em seu auxílio e dão-lhe um pedaço de naan com muita manteiga. Tudo melhora, mas o clima está estragado para sempre, com a sua namorada a rir a bandeiras despregadas, pela sequência ciclópica de acontecimentos a que assistiu. O que é interessante é que se repetisse a graça no dia seguinte claro que ia acontecer de novo, mas com menos intensidade. O picante tem um aspecto interessante de habituação que, vencida uma primeira barreira, nos ajuda a intensificar sabores num prato, dispensando condimentos como por exemplo o sal. A impressão calórica permitiu e permite disfarçar a fome, ou satisfazer-se com menos, instrumental outrora nos tempos de míngua que marcaram sobretudo as nossas terras mais a sul. Acaba por marcar o próprio sabor das coisas e a intensidade de tudo e assim aumentar também o prazer de comer certas maravilhas.
Há todo um mundo à espera de quem se decide pelo mundo das malaguetas e pimentos picantes.  Em primeiro lugar é preciso humildade e paciência, para não saltar etapas, e logo a seguir é fundamental fazer os seus próprios molhos picantes. Há muitas receitas disponíveis e o importante é controlar os ingredientes que utiliza. O restaurante lisboeta Comida de Santo, especializado em cozinha baiana, começou agora a comercializar o seu picante em frasquinhos de 50 centímetros cúbicos (7,50 Eur). Sobre a dureza e punição de um picante na boca, pode ter a certeza que mesmo quando doer muito há outros centenas ou milhares de vezes mais fortes. Aliás, há uma escala para medir isso mesmo. Foi inventada por um boticário americano, Wilbur Scoville no início do séc. XX e fixa valores numéricos para o grau de picante. Basicamente trata-se de um teste organoléptico, que é definir a quantidade de água com açúcar que é precisa para anular o efeito de determinado picante. Uma malagueta vermelha relativamente forte tem 500 unidades e já dá muito trabalho a quem não está habituado. As de Moçambique são mais fortes, podendo rondar as 2 mil unidades. Neste momento, o máximo que se conhece já está acima de 2 milhões de unidades, o que só é possível com manipulação e mistura de sementes para concentrar o poder picante. Cada pessoa tem a sua medida ideal e deve cautelosamente treinar em patamares sucessivos até a encontrar. Vamos começar?


 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sobre a Batata Frita

À medida que os tempos avançam inexoravelmente, cresce também a nossa soberba acerca do conhecimento das coisas. O caso das batatas fritas demonstra bem como é verdade que quanto maior é a bola do que já sabemos, maior é a fronteira com o que desconhecemos.

Mais uma acha para a fogueira, acerca da expressão “french fries”. De repente, espécie de sabedoria instantânea, parece que vem do tempo da II Grande Guerra, quando os soldados belgas francófonos ofereceram batatas fritas da sua lavra aos soldados americanos achando estes que se tratava de franceses. A autoria da batata frita vai mesmo continuar a ser belga, até ver. Não que seja importante, note-se, mas há dúvidas que se nos incrustam quase na alma, nunca mais nos dando sossego. A coisa boa da regulação do poder paternal da batata palito levada a fritar é que já tem mais de cem anos e ainda não se sabe em que casa irá ficar.
Há um artigo publicado no jornal belga de Liège no dia 14 de Novembro de 1900, por um tal Bertholet, que para mais era um pseudónimo - o verdadeiro autor até hoje não se conseguiu saber quem era – que estabelece parâmetros de pesquisa que permanecem, nos dias de hoje, nas agendas de quem se ocupa e preocupa com as coisas de comer. O postulado principal de Bertholet, imagine-se, era de que a batata frita tinha nascido na Rússia, porque, afirmava ele, era o nome que encontrava inscrito nos pacotes que circulavam na feira anual de Liège, dentro dos quais estavam os famosos palitos de batata dourados. Acontece porém que a marca resultou apenas de uma exploração comercial da guerra da Criméia, inventada por um tal de Fritz, industrial de meados do Séc. XIX. Os pacotes grandes tinham a marca “Russas”, enquanto os pequenos eram os “Cossacas”. Com o passar do tempo, esta última marca acabou por desaparecer, mas as “russas” mantiveram-se impantes e gloriosas no mercado. Era pois natural que o precipitado Bertholet jurasse a pés juntos que as batatas fritas tinham sido inventadas na Rússia. Nada mais nada menos que a força de uma marca em acção. Força que todos experimentamos em inúmeras coisas que comemos e nomeamos. Derrotado o argumento, e com o fulgor renovado no dealbar do Séc. XX, o debate acendeu-se, com publicações diversas em jornais, revistas e artigos até de índole científica. Marie Delcourt, académica belga acaba mesmo por afirmar e supostamente demonstrar, em 1961, que a batata frita tinha chegado à Bélgica pela mão dos exilados franceses do segundo império. Havia vários relatos de grandes travessas de cerâmica que no final da refeição, em Paris, eram colocadas no centro da mesa, contendo “batatas fritas, louras, crocantes e ao mesmo tempo macias”. Neste caso, reforçava-se a ideia de que se tratava de um costume estritamente parisiense, e a sua produção era como havia indicado Brillat-Savarin, assentando no sábio a forma correcta de as comer: à mão, e com uma taça de sal ao lado para as salgar a gosto. Estamos em meados do Séc. XIX, e Paris era a capital do requinte, além de ponto de convergência do que era novo. Coisa chique e rara, portanto, e totalmente desconhecida dos belgas, até que supostamente os proscritos de 1851 do regime, forçados ao exílio na vizinha Bélgica, levaram as “frites” para Bruxelas. Sabemos que franceses e belgas ainda hoje não morrem de amor uns pelos outros e claro que isso vem de trás. A tese de que os franceses expulsos é que fizeram as bases da cozinha belga é não só uma forma de fazer destemperar instantaneamente o belga mais fleumático como também um sentimento nacional francês. Mas no caso das batatas fritas há uma troca de datas e um erro de sobreposição de cronologias de meia dúzia de anos, não mais, e que é suficiente para indicar que quando as batatas fritas chegaram pela mão dos franceses à Bélgica… já lá estavam, graças ao jeito para o negócio do “tal” Fritz, o mesmo das “russas” e das “cossacas”.
O único lugar que resiste às investidas da investigação histórica é mesmo a Bélgica, mais especificamente a Valónia (parte francesa do país). Terá sido cerca de 1680 que a batata frita foi inventada, segundo a belga Jo Gérard, apoiada no relato deixado por um seu antepassado, Joseph Gérard, com a data de 1781 e que é impossível não considerarmos, ainda hoje, notável. Resumidamente, dizia que os habitantes dos povoados ribeirinhos de Namur, Andenne e Dinant, ficavam no inverno privados do privilégio de pescar no seu rio Meuse por este congelar totalmente. Costumavam as gentes fritar os peixes que pescavam e então, relata Gérard, pegavam em batatas, cortavam-nas com a forma de peixinhos e fritavam-nas, para fazer as vezes do pescado à mesa. Diz ainda no mesmo documento que o hábito tinha já pelo menos 100 anos, portanto cerca de 1680. Isto é que já vinha estragar a tese toda, porque a batata só chegou a Namur cerca de 1735… As investigações acabaram por dar com invernos muito rigorosos e gelados em 1739 e 1740 e, descontadas as hipérboles e emoções literárias, na verdade a primeira vez que se esculpiu e fritou peixinhos de batata terá sido em 1739, e não em 1680. Temos, assim, uma data e local de nascimento. Será? Nem por isso. Há um problema… económico por resolver.

Pesquisa interminável?


Consta de todos os compêndios, manuais e dicionários que “fritar” implica a imersão num banho de gordura a alta temperatura. Aqui é que a porca torce o rabo, porque a gordura era qualquer coisa de raro, disponível apenas entre os mais abastados, e o relato de Gérard é sobre costumes de camponeses, de poucas posses. A manteiga era muito cara, a banha animal era rara e as gorduras vegetais consumiam-se com muita contenção. As pessoas que viviam do campo comiam as gorduras barradas no pão, ou no fundo de uma sopa, jamais haveria a quantidade necessária para levar ao lume um grande recipiente para fritar batatas. Descobriu-se que mesmo na casa mais humilde do Séc. XVIII havia uma frigideira, que se utilizava para saltear, a temperaturas relativamente baixas e por pouco tempo. As tais figurinhas de batata tinham afinal um destino que era pouco mais que salteá-las. Não se tratava de fritura. De novo no escuro, em relação a este mistério! Não se fazia nas casas mais abastadas, porque a batata não tinha estatuto de grande iguaria. Nas cozinhas mais humildes, era impossível e na pouca gordura que se colocava na frigideira não se conseguia fritar.
É aqui que ressurge o nosso Fritz, com que se iniciou esta peça. A única solução possível era de facto uma economia de escala. Conseguindo-se produzir uma grande quantidade de batatas fritas que depois se pudessem vender a preços acessíveis, em doses individuais, aí já era viável. Foi de feira em feira que o genial Fritz popularizou as suas batatas fritas. Teve um sucesso sem precedentes, o jovem… Frédéric. Pois é, o seu génio comercial era tal, que mudou o seu nome para um outro, que se pronunciasse como “frites”. Além disso, o seu primeiro grande mercado rapidamente foi o alemão, onde a batata frita – inicialmente em rodelas, depois em ambos os formatos – foi acolhida de braços abertos, bastante antes da Bélgica e França. Ora que nome mais apropriado que Fritz para o novo negócio? Não tardaria muito, contudo, que as gentes da Flandres e da Valónia se rendessem totalmente à maravilha produzida a partir do tubérculo que se tinha na conta de reles e inútil! Rapidamente a tenda de lona do empresário deu lugar a um stand robusto com mesas e painéis decorativos e em meados do Séc. XIX, para evitar os riscos de incêndio acarretados pela fritura em banha, passou a fritar as batatas em manteiga clarificada e as pessoas lá iam, bem postas, sentar-se e comer… batatinhas fritas. Les frites… de Fritz!

Frituras, variedades e outros

Fomos ter com José Campos, da Campos Silvestres, no Bombarral, para saber que tipo de batata seria a ideal para fritar. A variedade Agria tem sido considerada a melhor, mas hoje recomenda também a Laura, menos conhecida. A primeira é de casca branca, a segunda de casca vermelha, o que só por si deita por terra a regra – falsa, já se vê - que diz que as brancas são para fritar e as vermelhas para cozer. O conhecimento verdadeiro vive sobretudo e realmente de excepções. O que é então uma boa batata para fritar? A de polpa amarela, coloração que decorre do elevado teor em amido. Fritas ou em puré são as melhores. Já para cozer, deve utilizar-se as de polpa branca, menos ricas em amido e com mais açúcares de cadeia curta, escurecendo por isso se dadas à fritura. Aqui, a variedade Jaerla é, segundo o especialista, a melhor, por ser também rica em sabor. Na dúvida, devemos optar pela Picasso, vulgarmente conhecida como “olho de perdiz”. Essa dá para as duas funções, fritar ou cozer.
Da fritura propriamente dita, pouco há a dizer, porque as técnicas são inúmeras. Ficou celebrada como “à belga” a das duas frituras – 150ºC e depois de descansar, 180ºC – mas há muitas técnicas diferentes. A cozinha conhecida como “modernista” aconselha a cozedura prévia da batata em vácuo e fritura rápida por imersão para lhe dar textura. Nós por cá fazêmo-las normalmente secando-as em panos depois de descascadas e cortadas, e uma fritura simples em óleo de girassol a cerca de 180ºC. Mas isso é a gente a falar. Ainda precisávamos de saber quem inventou afinal a fritura dos alimentos. Mas isso é outra conversa.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

490 Taberna STB


Em Setúbal, onde há 60/70 anos se ia até à Avenida Luísa Todi para comer ostras - sim ostras de Setúbal - instalou-se a certa altura o hábito do choco frito. Quando é bem feito, aliás como tudo, é bom, petisco guloso, do agrado de todas as faixas etárias. Esta "Taberna" decidiu marcar uma presença contra-corrente, servindo boas carnes, entradinhas e gulodices, criando uma alternativa saborosa, o que é de saudar. É sítio para explorar e conhecer melhor. Óptima selecção de vinhos. Av. Luísa Todi 490, Setúbal. Preço médio 22 Eur. Tel. 265 109 960

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Salve-se a chanfana!

Como quase todos os outros pratos antigos, a chanfana não tem assento de nascimento nem cartilha obrigatória. Vive de nomes vagos e ingredientes de natureza difusa. Há poucas dúvidas de que nasceu para a cabra velha, em jeito de aproveitamento e as leituras modernas sentem-se aqui e ali. Pede novos autores e clama por inovação.

Quando queremos perceber melhor um prato da tradição portuguesa, daqueles que nos parece de sempre, tal a antiguidade neles percebida, devemos fazer sempre duas coisas: olhar para a sua história na perspectiva de busca das receitas originais, por um lado, e ver se o dito prato ainda vive e como. A primeira serve para criar um fio condutor entre passado e presente, bem como situar-nos no tempo e na história, fazendo esse exercício inefável que é colocarmo-nos na cena, compondo o lugar na forma imaginada. A segunda, naturalmente, segue a linha pragmática do "modo de fazer". Sabemos que é muito difícil que alguma coisa saiba ao que sabia há 200 anos mas podemos aceitar que determinado preparado ou prato confeccionado que temos à frente representa com justeza e rigor a melhor aproximação possível aos manjares de outrora. Enquanto ainda contamos com alguns redutos restaurativos onde a encontramos feita de forma limpa e cândida, aproximamo-nos da chanfana para lhe sondar contornos e limites e pensar em termos de harmonias vínicas. A regressão etimológica da palavra chanfana sugere a um tempo as palavras sinfonia e chanfaina, ambas são admissíveis na lógica da evolução da língua e dos termos culinários. Chanfaina é um prato das raízes do povo nosso vizinho, no qual são processadas as vísceras com cebola e especiarias, extraídas entretanto para livrar as partes mais nobres limpas de sabores e cheiros espúrios que eventualmente seriam gerados na assadura ou estufagem. A origem parece por isso ser camponesa, do tempo em que os pastores tinham de entregar a parte melhor aos senhores, sobrando bofes, corações, fígados, rins, gorduras, abas, cabeças, etc., que cozinhavam de acordo com as respectivas tradições. Desenvolveu-se em torno da chanfaina todo um conjunto de tratamentos preliminares e preparações, visando a facilidade acrescida de cozedura. Chanfaina parece ser mais aplicável que sinfonia, apesar da matriz etimológica nos forçar a pelo menos colocar a hipótese. Exprime sobretudo a ideia de diversidade, o que faz sentido, já que ossos, peles, vísceras e carnes são levadas num mesmo recipiente ao forno.
As referências rápidas de que hoje dispomos obrigam-nos a perceber na chanfana portuguesa diferenças notórias. Herdámos o nome, mas não a prática. De facto, entre nós o prato é elaborado sobretudo a partir de cabra velha, que como se sabe tem uma carne que em cru é rija como couro, e que qualquer tentativa de a assar, fritar ou cozer resulta em catástrofe se não se lhe dá uma marinada valente, ou tratamento de choque. Diz-se que pegou entre nós a chanfana no Séc. XIX, no tempo das invasões francesas, em que só os animais de criação mais velhos escapavam aos saques diários e sistemáticos dos rapazes fiéis a Napoleão. Estas verdades valem o que valem mas aceitamos sem resistência a ideia de que de facto se trata de um aproveitamento de carnes. Isto passa-se essencialmente na Beira Litoral, lugar onde ainda hoje uma ou duas vezes por semana os locais lhe rendem homenagem, seja nos seus lares seja nos restaurantes das imediações. Entende-se como cabra velha aquela que já não procria nem produz leite. O tempo de vida útil, em termos de criação, é aquele em que dá cabritos ao dono, o que nos liga também à ideia de que o cabrito é uma boa pista para chegar aos bichos na idade adulta, à maneira de pesquisa. Por sua vez, o irrequieto e infantil saltarilhão só é feliz na serra, onde pode andar para cima e para baixo, exercitando a sua ainda frágil massa muscular mas à qual com o movimento confere um sabor muito bom. Estamos por isso sempre a falar de uma prática serrana. Quando subimos na geografia e vamos para o interior, quase existe uma transposição da prática da cabra para a ovelha. E encontramos, de facto, chanfanas feitas a partir das lanzudas criaturas, com melhores ou piores resultados.
Como é feita a chanfana? Corta-se o bicho em partes pequenas e põem-se dentro de uma caçoila de barro, a que se junta banha, sal, colorau, alho, folha de louro e piripiri. Cobre-se tudo com vinho tinto, fecha-se o recipiente com a tampa e leva-se a forno de lenha para ao longo de cerca de 6 horas ou mais ficar a cozer lentamente. Diz-se que a utilização de vinho para fazer este prato resultava da renúncia à utilização de água para cozinhar, fosse por estar envenenada pelos soldados franceses ou porque podia ser transmissora de doenças. Dita doutra forma, a consagração do vinho como forma de beber boa água. É nas beiras, de facto, que as marinadas deixam de ser feitas em vinho branco e dão lugar à vinha d'alhos. O vinho sempre foi, além disso, considerado um meio asséptico. Nos tempos modernos, que são os nossos, já se não levam as gorduras más à caçoila; as chanfanas saem hoje limpinhas e apetitosas, cheias de temperos e tratamentos que cada cozinheiro lhes quer dar. Até ver, o prato não está por isso em risco. Mesmo assim, não nos esqueçamos de o chamar à nossa mesa!


Harmonizações

Ensaiámos a chanfana com quatro vinhos bastante diferentes, alguns até talvez inesperados. É um prato no qual devemos esperar a presença de gorduras saturadas, bem como de aromas e sabores muito intensos, razão pela qual está longe da consensualidade.

+++ Quinta Nova N. S. Carmo Mirabilis Grande Reserva DOC Douro tinto 2011
É um vinho poderoso, mas ao mesmo tempo elegante. Vai ao encontro das especiarias presentes na chanfana, desmaiando em nuances de gosto que dão prazer. É este tipo de harmonia que procuramos idealmente numa boa conjugação.

++ Quinta do Couquinho Touriga Nacional DOC Douro rosé 2012
Está um rosé de mão cheia, gastronómico, e com mais um ou dois anos ainda vai ficar mais pronto para a mesa. Com a nossa chanfana, conseguiu criar um corte apreciável da gordura do prato, recondicionando-nos o palato como se impõe.

++ Herdade do Sobroso Cellar Selection Syrah & Alicante Bouschet DOC Alentejo tinto 2009
A riqueza aromática deste vinho, juntamente com a noção de grande equilíbrio de boca que inspira, tornam-no parceiro de pratos condimentados e equilibrados. É por isso importante que a própria chanfana seja ela própria completa, no sentido de não pesar nem precisar de correcções, o que sabemos ser raro.

+ Adega Mayor Solista Touriga Nacional DOC Alentejo tinto 2010
Quanto mais evolui este vinho mais complexidade lhe reconhecemos, e mais capacidade gastronómica lhe sentimos à mesa. É um vinho poderoso, encorpado, e ao mesmo tempo elegante. Pode ser um pouco esmagador, dominante, com a chanfana, mas há um lado de descoberta a que damos facilmente as boas-vindas.