terça-feira, 20 de maio de 2014

Algumas coisas sobre citrinos

Citrinos

Sabem, cheiram e transpiram frescura. Usamo-los na forma completa enquanto frutos, às rodelas de corte mais ou menos sofisticado servem para decorar pratos e embelezar mesas. E são talvez o ingrediente mais discreto de toda a cozinha.

Todos os dias passamos, tocamos, transformamos ou consumimos um citrino. A Vitamina C – ácido ascórbico - dispensa apresentações, fazendo parte da vida em todas as idades e estados como qualquer coisa que nos defende dos males que por aí andam. Na cozinha portuguesa, incluindo a doçaria, os citrinos são praticamente indispensáveis, desde o sumo até à raspa, feitos espécie de contrapeso de tudo o que é gordura indesejável, bem como catalisador de sabor, frescura e amaciamento de peixes, carnes e legumes. Pertencem, todos eles, ao género Citrus da grande família das Rutáceas. Só o Citrus gerou, ao longo do longo tempo em que medrou sem qualquer domesticação – mais de 4 mil anos – 930 espécies. Todas de folha e flor odorosa, fruto de vidrado exterior colorido, polpa intensa e sumarenta, genialmente confinada e maturada em bolsas compactas e contíguas a que chamamos gomos, semente pequena, em certas espécies mesmo ausente. Tem-se hoje a certeza quanto à origem dos citrinos, fixando-se na Índia, Sul da China e Indochina; resumidamente, na Ásia tropical e subtropical. Pois é, uma das glórias do sabor e culinária mediterrânicos foi toda importada. Mas não foi de qualquer maneira, primeiro foi para o Norte de África, subindo depois para o Sul da Europa. Com o Mediterrâneo de permeio, oscilou por ali em modo latente. Os árabes chamam ainda hoje “naranj” à laranja amarga e “portukal” à variante doce, o que nos enche o ego a nós, portugueses. Não temos, contudo, que nutrir narcisismos semi-providenciais, infelizmente parece que o nome vem do grego “portokallos”. Podemos, por outro lado, encher o peito com as espécies que podemos considerar nossas. São elas a já evocada laranja – “citrus sinensis” -, a tangerina – “citrus reticulata, citrus deliciosa e citrus unshiu” – e o limão – citrus limon. Importantes na mesa são ainda a toranja – “citrus paradisi” – e a lima – “citrus latifolia”. O assalto às Américas deu-se nas Descobertas, no início do Sec. XVI, e talvez tenham sido apenas os espanhóis os facilitadores do prodígio que foi o bem que se deu por ali tudo o que era citrino. É que para que o fruto saia belíssimo basta que a temperatura esteja na janela entre os 12 e os 38 graus centígrados no momento do seu desenvolvimento. O frio mata a árvore, o excesso de água tira-lhe virtude e o vento pode ter efeitos tenebrosos no fruto, como por exemplo incrustação de areias ou mesmo o seu arranque. É signo de carga divina para os judeus, na Festa dos Tabernáculos, ou Tendas, que se segue ao Yom Kipur, por altura das colheitas em Israel. Imagina-se que por simpatia de aroma com a folha do cedro que se usa alternadamente, o rabino ostenta um grande limão da espécie iemanita, que não tem polpa, agradecendo a abundância para mais um ano. Ao contrário do que já li, Lima, capital do Perú, não vem do fruto com o mesmo nome, mas até podia vir, porque foi estabelecida em 1535, com nome imposto pelos espanhóis. O nome vem do rio Rimaq, que os nativos diziam Limaq, passando depois a Lima. Mas isto, citando Gago Coutinho num famoso escrito que nos deixou sobre a Teoria da Relatividade, pouco ou nada influencia o nosso quotidiano.

A gota

Por muito que se altere ou tecnicalize a arte de escrever receitas, sempre parecerão mais transmissão oral lavrada em papel do que trabalhos científicos. Quando não forem, deixarão de ser receitas. E sempre, quando processadas em terras distantes da nossa nos sairão diferentes os pratos que sempre fizemos nas nossas cozinhas. Azeite, sal e ervas serão então grande parte da explicação, mas poucas vezes se pensará sobre o limão, por exemplo. E a verdade é que, apesar de estar em segunda linha na nobreza dos ingredientes, faz toda a diferença.
A gota é uma unidade de medida extraordinária, que no fundo não o é. Tudo depende da mão e da bondade com que se lê ou ouve a receita. Quem não sabe que umas gotas de limão preservam a vitalidade da fruta descascada e cortada? Regamos uma salada de fruta com algumas gotas de limão, mexemos e mantemos o festival colorido da taça onde a servimos. Agora passou apenas a condimento servido ao lado das ostras, mas o limão que acompanhava as ditas ao natural, portanto cruas e vivas servia para fazer contrair a membrana que envolve a ostra, confirmando a aptidão ao consumo. As amêijoas da receita de Bulhão Pato precisam das gotas de limão no final para atingir o zénite do sabor. Na verdade, aqui até passamos das gotas para o sumo, se as queremos intensas à mesa. Ao marisco ao natural, as gotas certas põem-no a cantar!

O sumo

Sumo de limão, lima, toranja ou laranja, seja de “meio” ou “inteiro” fruto, aplica-se em muitas preparações e receitas, sólidas e líquidas. A lima tem uma casca muito fina e um sumo abundante e está na base do célebre ceviche, prato de excelência da cozinha peruana. Faz-se normalmente migando o peixe crú com uma faca, impondo-lhe depois a marinada. A estrutura da proteína é quebrada por efeito do ácido cítrico, resultando numa conserva relativamente estável. Não é cozinhar mas quase e o resultado é sápido. O resultado é como tudo em cozinha, há que respeitar o tanto quanto. Agora que a canícula está finalmente aí, o sumo de lima, misturado com açúcar e cachaça dá uma das bebidas mais populares do tempo estival: a caipirinha. O nome fixa-a no interior do brasileiro estado de São Paulo, e existe na versão de caipirosca Dava-se aos escravos a aguardente de cana, misturada com sumo de citrinos. Em Cabo Verde, donde muitos terão vindo para o Brasil, há ainda hoje uma bebida semelhante que se prepara com grogue, uma espécie de rum mais pesado. Outra bebida que nos entrou no goto é o mazagran. Uma chávena de café bem forte, um cálice de rum – que quase ninguém põe -, sumo de meio limão, 3 colheres de sopa de açúcar, depois tudo para um jarro que se atesta com gelo, evoca a mediterrânica terra argelina do mesmo nome. É uma bebida que mata a sede como poucas.

A rodela

Lima, limão e toranja prestam-se ao corte em rodelas, fatias de espessura variável cortadas perpendicularmente ao eixo principal do fruto, com aplicações diversas. Há um costume inglês intrigante, que consiste em colocar uma finíssima rodela de limão ou laranja na chávena de chá quente. Por menos nasceu o “iced tea” – chá gelado -, consta que por aflição de um negociante inglês de chás indianos nos EUA. Face ao calor que de repente fazia, decidiu mandar encher copos de cubos de gelo e depois servir o chá por cima com a competente rodela de limão, fazendo sucesso. Nós temos automaticamente simpatia por rodelas de citrinos no prato, e mesmo num bife somos capazes de com um ou dois golpes de garfo extrair o sumo necessário para equilibrar ou intensificar o sabor. Talvez a rodela de laranja que é proverbialmente servida com o leitão assado à Bairrada tenha também a missão de compensar a eventual gordura presente. Confesso que não sou grande fã, mas como também não concordo com o “molho” que é servido ao lado, penso que não tenho voto na matéria. Quando o leitão é de má qualidade, não há molho nem laranja que o salvem e quando é bom é uma experiência gloriosa. Mas quando ingerida no final da empreitada, a laranja tem contudo um efeito regenerador interessante. Assim como é interessante o efeito de uma rodela de limão numa água com gás, água tónica ou mesmo numa cola, neste último reduzindo a percepção do açúcar presente.

A raspa

A matéria branca que existe entre o vidrado e a polpa de um citrino é incomestível e não se deve utilizar. A sua digestão é difícil e adultera os sabores dos cozinhados, tornando-os acres e desagradáveis. Já a fina película da casca a que acabei de chamar vidrado mas que conhece diversas outras designações, é um ingrediente muito especial. Quando no receituário é mencionada uma casca de um citrino, é dessa fina camada exterior que se fala. Quem tem um ralador em casa e nunca raspou laranja ou limão para dentro de uma salada fria não sabe o que perde, em termos de poder refrescante. Tratar o frango em crú com gengibre e raspa de limão na meia hora que antecede a cozedura é outra experiência a fazer, mesmo que o destino seja a integração num molho de natas ou um fricassé. O pudim do Abade de Priscos pressupõe sempre a calda a reduzir até ao ponto de estrada ou espadana, consoante o gosto pessoal, com a casca de um limão cortada muito finamente. O próprio leite-creme gosta muito de um ou dois pedacitos de vidrado de limão enquanto coze. Antes de arrefecer, há que retirá-lo. O resultado é uma sobremesa equilibrada de que não há criança que não goste.

Culinária farta e diversa

Na forma de gotas, sumo, rodelas ou raspas, os citrinos já estão eternizados, em todas as cozinhas do mundo. Moçambique preservou uma receita que está hoje banalizada mas na qual é fundamental perceber a importância do limão. É a cafriela de frango e vive de um preparado que é feito com sumo de um limão grande, 3 dentes de alho, uma malagueta, e uma mão-cheia de sal. Vai tudo ao almofariz sem esmagar demais. Integra-se depois 125 g de manteiga, que se bate com o conteúdo do almofariz. Esfrega-se o frango por dentro e por fora com o preparado e deixa-se repousar duas horas. Depois só pede grelha e atenção, para se ir regando com o que vai escorrendo da cozedura. Na cafriela, aferem-se o poder do tempero e a capacidade de transformação do limão e a sua “arte” em saber esconder-se por detrás de sabores mais dominantes. Outra demonstração desse poder discreto do limão é o chamado frango maricas. Pica-se um limão inteiro com o garfo, que se coloca dentro do frango, fechando-o com agulha e linha. Coloca-se em travessa de ir ao forno com vinho branco um pouco de caldo de aves, temperando-se de sal e especiarias a gosto. Rega-se com azeite, vai a assar e quase sozinho faz-se pitéu. Esta é uma solução muito boa para quem tem pouco tempo. O exsudado do limão garante a sua hidratação à medida que a cozedura vai avançando. Quanto mais se for regando, mais apurado vai ficando o molho. Com um frango do campo é que o resultado é óptimo, apenas havendo que atender ao tempo maior de cozedura que há que lhe dar.
É inevitável a referência ao pato com laranja, o mesmo que se tem como clássico da cozinha francesa. É interessante, porque afinal parece que foi uma receita importada da italiana Toscana, por efeito do casamento de uma Médicis com o rei de França. Toque mediterrânico, portanto, na aristocrática receita. Precisa, para pontificar, de laranjas amargas (“citrus aurantium”), o que nem sempre é possível. Há um molho francês, “bigarade” que é produzido com o vidrado das ditas laranjas cortado em juliana fininha, depois reduzido no sumo delas. O pato com laranja está na base deste molho, já que ele pode produzir-se sem mais, sempre com o pato em processamento. Socorro-me do “Livro do Mestre João Ribeiro”, da Assírio e Alvim, com textos trabalhados por José Labaredas e José Quitério, para o demonstrar: “O pato já deve estar limpo de intestinos e bem chamuscado para lhe sair toda a penugem. Cortar em 8 bocados. À parte, fazer um bom refogado com manteiga, um pouco de azeite, 1 cebola e 2 dentes de alho, tudo picado; depois juntar o pato ao refogado, pôr pimenta, um pouco de vinho branco, 2 dl de caldo de carne ou água e deixar refogar a fogo brando durante uns 20 minutos. Quanto estiver quase cozido, juntar sumo de 2 laranjas. As cascas cortam-se em juliana. Juntar ao pato um pouco de licor Curaçao. Se estiver um molho fino, engrossar com um bocadinho de maizena ou fécula de batata dissolvida em vinho do Porto. Servir enfeitado com gomos de laranja sem peles”.

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