domingo, 6 de julho de 2014

Caril, especiaria de especiarias

Súmula de vários ingredientes, quase conta a história de famílias, gerações e regiões de todo o mundo. Utilizamo-la nalguns pratos, contudo, sem nos darmos conta da diversidade de escolha que existe e do potencial de harmonização vínica que comporta.

Talvez já seja tarde demais. O mundo está a utilizá-lo há décadas como ingrediente directo, como se colhido de uma árvore ou arbusto de paragens exóticas, depois processado artesanal ou industrialmente. A comprá-lo em regime de utilidade e preço, sem considerações de origem nem pureza. O caril perdeu a sua matriz identitária, quando enquanto mistura de especiarias pode e deve reflectir desde uma história familiar até um legado cultural. Os cultores da boa comida e das experiências ditas gourmet são normalmente defensores da diversidade, o que força a abordagem importante das raízes e da proximidade. É por isso importante que todos, iniciados ou não, integrem o caril nos seus léxicos, com a consciência de que é sempre um lote de especiarias que compõe cada um. O trabalho de harmonização com vinhos depende muito da mistura em causa, pelo que se impõe um pequeno périplo pelos ingredientes mais frequentes e dominantes. Gostamos deles individualmente, mas em conjunto transformam uma galinha velha num prato divino, criam novas dimensões de prazer na cozinha vegetariana e são uma plataforma inesgotável de experimentação com partes aparentemente inconciliáveis.

As especiarias e o tempero

Há componentes mais notórios e dominantes do que outros, num caril. Começamos pelo açafrão, que é a especiaria mais cara do mundo e uma das mais trabalhosas de obter. Já foi mais valiosa que o próprio ouro, e é ainda hoje muitas vezes referido como "ouro vermelho". O açafrão verdadeiro são os três estigmas da flor Crocus Sativus e apresenta um sabor agridoce, combinado com cheiro a mel. Marca muito qualquer conjunto, pelo que se utiliza uma pequena porção. São precisas mais de 100 mil flores para produzir um quilo de açafrão. Apesar de estar disseminado por todo o mundo e na Índia ter particular importância, tem-se como certo que a disseminação se deu pela mão dos romanos, do Mediterrâneo Norte e Oriente. Segue-se em valor económico o cardamomo, nas variantes verde, preto e Madagascar. É um dos mais notáveis sabores da cozinha indiana e a sua proveniência é da grande bacia mediterrânica formada pelo médio-oriente e o norte de áfrica. A bebinca, sobremesa pacientemente feita em camadas é impossível sem o cardamomo, por exemplo. Sabor balsâmico, com notas limonadas muito fortes, constitui um vector de frescura em qualquer mistura de caril. As sementes de coentros são porventura a terceira especiaria a considerar. Em Portugal relacionamo-nos sobretudo com as folhas frescas de coentros, para temperar saladas ou finalizar pratos. Curiosamente, em Israel há exactamente o mesmo costume, mas não é disso que estamos agora a falar. As sementes são pequenas esferas, com sabor suave e adamado, num fundo às vezes evocativo da raspa de laranja. De novo, a frescura do conjunto a sair beneficiada. Da Índia e China vem a utilização sistemática da raiz de gengibre. Seca e moída, tem honras de Confúcio e Corão, pelo poder purificador e salvífico que traz consigo. Foi ao longo de mais de 2 mil anos base da medicina chinesa e generalizou-se até aos nossos tempos no ocidente o polvilhar de bebidas, carnes cruas, arrozes, caldos e sopas. Foi, já agora, assim que nascei a "ginger ale" em Inglaterra; as pessoas deitavam um pouco de pó de gengibre. É um ingrediente que raramente falha num "mix" de caril e é uma das fontes de intensidade, por vezes até picante. Os cominhos também são parte importante da mistura exótica e além de nossos conhecidos - há poucos enchidos que os não tenham, por exemplo - tiveram ao longo de milhares de anos um papel muito importante na medicina, alimentação e até economia, já que foram outrora moeda. No caril são ingrediente discreto mas fundador, a sua utilização na cozinha foi celebrada por gregos e romanos e asseguram harmonia em pratos de cozedura longa. A noz-moscada é uma semente de dimensões generosas, dura, e de utilização quotidiana, por exemplo para finalizar um puré de batata. O seu gosto ligeiramente adocicado mas ao mesmo tempo balsâmico torna-a praticamente numa especiaria multiusos. No topo da complexidade está a pimenta-da-jamaica, quase uma corporização colectiva de noz-moscada, cravinho, gengibre e canela. Fortemente aromática e inconfundível, esta especiaria está na alma do caril e é ligeiramente picante. Também pode ser um pouco picante o pimentão, ou paprica. Por cá utilizamo-lo de forma moderada, mas os espanhóis põem-no em quase tudo, cru, cozido ou assado. É interessante a sua transformação em pratos de tacho ou fritos e, tal como o açafrão, dá uma coloração vermelha inconfundível à comida. Existe em diversos graus de "dureza" picante. Finalmente, o alecrim em pó faz a diferença entre estilos e sabores de caril. Fica provado que só mesmo quem não resiste a simplificar é que pode ver no caril uma coisa simples. E fica também o desafio de começar a olhar para a lista de ingredientes de cada caril de compra, mais que não seja para constatar a sua enorme diversidade.

Os muitos modos de usar

Apesar da grande diversidade e adaptação às diferentes regiões e etnias do mundo, há um elemento permanente a acompanhar todos os caris: o arroz. Normalmente da cariedade basmati e aromatizado apenas com um dente de cravinho. O caril mais comum entre nós é o goês, que se baseia no côco fresco para atingir o seu sabor típico. As proteínas mais frequentes são o camarão e a galinha - nunca em simultâneo, claro - e o grau de picante fica ao gosto da pessoa, sendo que em Gôa nunca foi grande apanágio. Nas outras províncias indianas, na Tailândia e no Nepal é que temos de nos precaver, porque o moderamente picante é letal para a nossa bitola normal.
Faça as suas próprias experiências, contactando um bom negociante de especiarias, e atreva-se a compor o seu caril. Casas como a Leitão Oliveira (Tel. 218 877 576) podem dar bons conselhos para chegar a bom porto. Na perspectiva culinária estrita e com a canícula a aproximar-se, não deixe de experimentar fazer uma salada carilada de lingueirão - ou outro marisco - para comer à colherada no regresso da praia. Nas suas próximas batatas cozidas, experimente dar-lhes um "banho" suave de caril para servir com peixe grelhado. Sobretudo, experimente sempre fazer coisas novas. Vai conquistar uma nova forma de olhar para o caril.


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