sexta-feira, 29 de agosto de 2014

António Saramago: pronto para mais 50

(Entrevista Feita em 2013, a propósito dos seus 50 anos de carreira)

António Saramago é um dos mais experientes enólogos do país. Pertence ao grupo dos profissionais intranquilos que têm criado vinhos de vanguarda, aplicando ao mesmo tempo o seu talento no transporte para os tempos modernos. Globalização, internacionalização, e sobretudo a ideia de que os vinhos portugueses têm de valer por si mesmos, seja em que circunstâncias for, são assuntos deste homem singular, que acaba de celebrar, aos 64, 50 anos de carreira.

Ao contrário dos cozinheiros, os enólogos não acompanham os seus vinhos até ao momento final do consumo. Como funciona esta profissão peculiar?
Totalmente orientada para o consumidor, mas com a assinatura do enólogo. Antigamente, os vinhos eram muito feitos ao gosto de cada enólogo, quase para seu próprio consumo. Os grandes vinhos, contudo, precisam da ratificação pelos grupos que consideramos nossos clientes, ou colecionadores.

Mas hoje vemos muitos vinhos feitos especificamente para certos mercados.
É verdade, mas a esses vinhos eu não consigo chamar vinhos da minha vida; são vinhos que faço para clientes e para mim próprio, enquanto técnico especializado de enologia.

O que é para si um grande vinho?
São os vinhos que conseguimos beber agora, e que duram 10, 20, 30 anos, sempre a dar-nos prazer.

Temos mais grandes vinhos hoje do que antigamente?
Isso não sei. Alguns dos vinhos que tive o privilégio de fazer dão-me ainda hoje, volvidos 20 anos ou mais, muito gozo a beber e sinto que ainda estão para durar. Devo dizer, contudo, que um certo grupo de vinhos estrangeiros aclamados pela crítica como grandes vinhos não vão durar nem uma década!

Gostava que a sua assinatura fosse sentida por quem prova os seus vinhos mais importantes?
Eu conheci grandes enólogos portugueses, grandes senhores do vinho, para quem, como para mim, o vinho é um produto muito nobre. A nobreza tem de perdurar. Todos eles têm um cunho muito próprio, que imprimem aos seus grandes vinhos. É claro que eu também gostaria muito que o meu cunho fosse sentido por quem bebe os meus vinhos melhores.

Como definiria o seu estilo de vinho?
É muito simples! (risos) Muita complexidade, estrutura bem trabalhada e boa acidez. Tudo num conjunto equilibrado.


O princípio

Como nasceu para o vinho?
Nasci profissionalmente no dia 2 de Agosto de 1962, numa grande empresa que foi também uma grande escola, a José Maria da Fonseca, em Azeitão. Tive dois grandes mestres, António Soares Franco, formado em Montpéllier, e Manuel Vieira, professor do Instituto Superior de Agronomia (pai do enólogo Manuel Vieira). O meu pai era o chefe do armazém, operando também como coordenador das operações e movimentações na adega. Tive o privilégio de trabalhar com Joaquim Costa, até 1973, altura em que ele saiu da empresa e eu, com 25 anos apenas, casei. Fiquei então eu a chefiar a enologia da casa, com o apoio científico de Manuel Vieira.

Sempre foi inequívoco que seria enólogo?
Fiquei ainda algum tempo no laboratório, a fazer as análises que ainda hoje faço, estava, então à frente da empresa o engenheiro António Francisco Avillez, que achou que eu devia ter uma formação em enologia. Achavam que eu provava bem. Fui então para a Universidade de Bordéus em três anos sucessivos. Foram meus colegas algumas das nossas actuais referências de enologia e aprendi com os melhores mestres. Pascal Ribéreau-Gayon, Émile Peynaud são alguns dos professores com quem estive cara a cara.

Não havia por cá nessa altura a figura do enólogo.
De facto, não havia. A profissão de enólogo só apareceu mais tarde no nosso país.

Continua a identificar-se com a escola francesa?
Absolutamente, e estou convicto de que continua a ser a plataforma de formação dos grandes enólogos.

Mas também se ligou a um professor da Califórnia.
É verdade, conheci o professor Roger Bolton, da Universidade de Davis, no final dos anos 70, quando ele estava a ajudar a montar o curso de enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Organizei uma prova vertical de moscatéis de Setúbal da JMF para o professor Bolton, que ficou totalmente siderado com a qualidade dos vinhos. Quis provar moscatéis dos anos de nascimento do seu pai e da sua mãe. Emocionou-se muito quando provou o vinho da idade da mãe, e mergulhou nele o lenço, para que, de volta aos EUA, ela pudesse cheirá-lo, já que não era possível bebê-lo.

A relação mantém-se?
Continuo a achar que é um dos grandes enólogos do mundo. Estive com ele lá na Califórnia em 2005 e somos bons amigos, comunicamos muito.

O vinho é uma ciência?
Tem uma componente científica, sem dúvida, mas tem muito a ver também com a sensibilidade.

O seu filho mais novo seguiu os seus passos.
Ele sempre teve uma queda grande para a enologia e acho que hoje é um bom enólogo, com autonomia e assinatura já vincada nalguns dos seus vinhos.


Os primeiros clientes

Pode considerar-se a Herdade de Coelheiros como o seu projecto inicial enquanto consultor?
Em 6 de Abril de 1992, abracei com o senhor Joaquim Silveira o projecto da Tapada de Coelheiros. Foi o primeiro projecto de raiz que eu fiz no Alentejo. É fundador e estruturante tanto na minha carreira como também no próprio historial do vinho alentejano.

Foi bastante inovador.
Dizia-se que era impossível fazer um bom chardonnay no Alentejo, mas nós conseguimos. O Sr. Silveira era um grande conhecedor dos grandes vinhos do mundo e queria para os seus tintos um perfil de Bordéus, para os brancos o de Borgonha. Tinha, além disso, uma colecção muito grande.

Diz-se que Coelheiros foi o primeiro “château” do Alentejo
O que me foi pedido foi que fizesse um vinho no Alentejo, mas que não tivesse nada a ver com os vinhos que se faziam no Alentejo. Plantámos castas estrangeiras e fizemos os vinhos seguindo técnicas radicalmente diferentes das praticadas na região.

A Cooperativa de Granja é, no entanto, um projecto mais antigo.
Em 1978, a JMF comprava uvas em várias partes do país e conheci o eng. José Leal Segurado, a pedido de António Soares Franco, porque pretendia vender-nos uvas da sua produção. Havia, Moreto Preto, Alfrocheiro, Trincadeira, etc, tudo de qualidade muito boa. Ele estava ligado à Cooperativa Agrícola de Granja e logo que passou a tomar conta da cooperativa, em 1982, convidou-me para trabalhar com eles enquanto enólogo consultor. Comecei em 28 de Abril de 1982.

Nasceu uma marca que viria a ser campeã mundial.
Criámos uma marca, Terras do Suão, com muito êxito. O primeiro engarrafamento acontecu em 1982 e foi o primeiro vinho alentejano a ter estágio em barrica. Não havia nenhum grande restaurante que não tivesse o vinho.

Foi esse o vinho que o ligou a Joaquim Silveira?

Sim. Ele conheceu o vinho no Gambrinus, onde ia almoçar à sexta-feira. O escanção Francisco Gonçalves deu-lhe o vinho a provar e logo ele se pôs em contacto comigo.

O que distinguia esse vinho dos outros?
Esse vinho era muito especial, era o resultado de uma escolha exaustiva dos vinhos produzidos a partir de talhões muito específicos.

Nasceu assim uma relação verdadeiramente estruturante.
Foi a pessoa que mais valorizou até hoje o meu trabalho. Foi sempre um grande amigo, transmitindo-me uma confiança sem limites.

Quem eram os seus colegas de profissão na altura?
No Alentejo, lembro-me perfeitamente de João Portugal Ramos, que sempre achei que iria muito longe e não me enganei. O professor Colaço do Rosário. Mais tarde, Paulo Laureano, João Melícias, António Ventura, Luís Duarte, Pedro Baptista Rui Reguinga e outros, todos com talentos invulgares.

Mantém boas relações com todos?
Infelizmente o professor Colaço do Rosário já não está entre nós, mas a verdade é que eu tenho boas relações com todos os meus colegas de profissão.

Em sua casa, vive-se o vinho?
O meu filho Nuno gosta e prova bem. Seguiu o curso de farmácia, e tem tido muito sucesso. O António fez o ISA e seguiu enologia, tem um gosto requintado e interessa-se por conhecer. Está de resto a fazer vinhos muito interessantes.

Gosta dos vinhos que o seu filho faz?
Gosto. E reconheço neles uma mesma forma de viver e conceber o vinho. Temos muitos pontos em comum.

A família é um grande apoio.
A minha mulher foi a mãe e pai dos meus filhos, ao longo de períodos em que eu, por força da profissão, não conseguia estar muito tempo em casa.

Começou um projecto no Brasil
Sim, e estou bastante entusiasmado com ele. Ainda está no início, mas creio ter um futuro brilhante.

Entretanto, tornou-se produtor de vinho.
Quando eu estive na Califórnia, deparei com essa realidade. É normal, quando os enólogos atingem determinado estatuto, darem o passo da autonomização. Há alturas na vida em que temos de tomar as nossas opções. A certa altura, quis criar os meus próprios vinhos, até já a pensar no meu filho, que entretanto já tinha terminado a sua licenciatura.

E tem sido dedicado à sua região.
Sim, muito. Gostava que os vinhos da Península de Setúbal gozassem da reputação das nossas outras regiões de topo. E temos muitas possibilidades de conseguir isso.

O Alentejo também tem estado na agenda.
Sim e penso que estou a fazer vinhos novos, propostas também novas. Caso do Porto da Bouga e do Dúvida.

Os moscatéis continuam a apaixoná-lo?
Os grandes moscatéis do mundo ainda são os de Setúbal. Tenho consciência de que os melhores de todos estão na José Maria da Fonseca, mas tenho produzido vinhos com a minha assinatura em que acredito muito.

domingo, 17 de agosto de 2014

Um nepalês que é nosso

Tanka Sapkota é o proprietário e chef do restaurante italiano Come Prima, em Lisboa. Lutador de fundo com uma invulgar veia criativa e uma força capaz de mover o mundo, oferece todos os dias o melhor que sabe, e sabe muito. Nasceu no Nepal mas é português de coração, dizemos nós.

Movimenta-se como um bailarino por entre as fiadas irregulares de mesas, cadeiras e frapés que pontuam o que é um dos melhores restaurantes italianos de Lisboa. De vez em quando desaparece para dentro da cozinha ou vai fazer uma qualquer operação no forno de lenha que marca logo quem entra no seu restaurante. Depois sai que nem um foguete, escada cima, degraus dois a dois, para atender a alguém que pediu uma boa grappa para terminar a refeição em beleza. Seja onde for, Tanka Sapkota aparece de repente, com um sorriso impossível de desmontar, os olhos de uma criança que recebe o brinquedo com que sonhava. A casa é a Come Prima, que vagamente quer dizer "como dantes". Menos vagas são as vozes de Marino Marini, Domenico Modugno ou Mario Lanza que mesmo sem soar no sistema de som nos namoram insistentes até ao fim da refeição. Além da agora óbvia "Come Prima", canções como Quando Quando Quando, Guarda che Luna, e Volare, compõem um imenso repertório do final dos anos 50 que espantosamente nos chegou intacto, mesmo no tempo em que o país não dava propriamente as boas vindas ao estrangeiro. Canções eternas que gritam Itália, paixão, toalhas aos quadrados e que fazem de qualquer massa "aglio e olio" parecer iguaria dos deuses. Sapkota é cuidadoso neste aspecto, não impõe aos seus clientes habituais o suplício de ouvir sempre as mesmas músicas quando escolhem a sua casa para comer. Nos dias especiais é ao contrário, então celebra-se bem a vida neste recanto lisboeta da Pampulha, perto das Janelas Verdes. Foi especial o passado dia 5 de Junho de 2014. Tão especial que que se ouvia "Come Prima" cantado e tocado ao vivo através de todo o restaurante. Sapkota estava em festa, com a atribuição do diploma de "La Verace Pizza Napolitana", certificando as pizzas como autênticas e verdadeiras, feitas ao estilo napolitano. Massa, ingredientes e assadura, tudo a preceito, como mandam as regras. A sua mulher Rita oficia diariamente no Come Prima ao lado do marido e naquele dia estavam também a filha Anjali (8 anos) e o filho Adarsha Pratik (6 anos) estavam ali a viver a festa e a vitória. Cerca de 18 anos depois do seu primeiro emprego em Portugal, Tanka - Giovanni, nome italiano que a certa altura da vida adoptou - tem um palmarés notável e um percurso de que pode estar orgulhoso. Especial entre especiais.

A 13 mil quilómetros do berço

Tanka Sapkota nasceu em Damek, no Nepal, no dia 15 de Janeiro de 1974. Tanto a sua mãe, Kalawati (67 anos), como o seu pai, Jaguputi (86 anos) estão ainda vivos, tiveram quatro filhos; Tanka é o segundo mais novo, mesmo assim 8 anos mais velho do que o benjamim, Yogesh. Este último também está radicado em Portugal e gere a Casa Nepalesa, restaurante étnico de sucesso e qualidade assinaláveis. A sua infância foi feliz, numa paz que considera total. O nosso homem é hindu, mas tem grande admiração pela figura e talante de Siddartha, o príncipe-Buda, também ele nascido no Nepal, em Lumbini, cerca de seis séculos antes de Cristo. "No Nepal vivemos lado a lado, hindus e budistas, em total tolerância", explica. É verdade que sempre que se pergunta a alguém onde nasceu Buda, a maioria responde China, outros Índia, mas quase ninguém Nepal, terra de prodígios, onde o próprio cristianismo pode ter ido buscar muitos dos seus fundamentos. Certo é que não foi em fuga que Tanka decidiu partir para a Alemanha. Havia qualquer coisa dentro que o desinstalava, desde 1992 pelo menos, altura em que abandonou os estudos de Direito, que o seu coração o levava à moção repetida de sair donde estava. Em Stuttgart foi ter com um italiano amigo de seu pai. Rapazinho de 18 anos apenas, queria trabalhar e, perante o ultimato do irmão mais velho, decidiu abandonar a universidade e tentar a sorte na Europa, junto de um homem que de certa forma, foi como um pai. Estudou alemão e teve o primeiro contacto com a cozinha italiana, começando, como nos filmes, a lavar pratos num restaurante. Um dia pôs a mão na massa e percebeu que conseguia fazer dela qualquer coisa, com bons resultados. Em três tempos, estava feito um verdadeiro pizzaiolo.
Quis o destino e a necessidade de regularizar a sua situação que veio até Lisboa em 1996. Chegou e gostou do que viu, parecia-lhe ser lugar onde podia ser feliz e criar raízes. Conseguiu emprego no restaurante Trattoria assim que perceberem que ele dominava o segredo das pizzas e sabia fazê-las à mão. Por ali ficou por três anos de trabalho intenso, sem intervalos, mas sentia-se realizado; o seu esforço era reconhecido a admirado. Em 1998 teve de ir até ao Nepal para o casamento do seu irmão e Cupido fez das suas. A irmã da noiva, Sita - ou Rita - fê-lo  regressar apaixonado para Portugal. Começou a sua vida de herói em Lisboa, acabando por abrir o seu primeiro restaurante em Outubro de 1999, o Bella Italia. Definitivamente, Lisboa era a sua cidade e parte dela era sua, dado o grande êxito da sua primeira ventura empresarial.

Instalar o amor e o ofício

O tempo dos casamentos combinados já tinha então passado, mas Tanka Sapkota - Giovanni - foi sempre pessoa de princípios. Timidamente começou uma troca de cartas com Rita, tentando encurtar a enorme distância, quase meio mundo, a que se encontravam. Foi plenamente correspondido e a intenção de casar não se fez esperar, mas para os seus pais Rita era ainda demasiado jovem para casar. Esperaram, assentes mais e mais na troca epistolar, até que vem o sinal positivo. Casaram no Nepal em 2002, um ano depois de se mudar para o Come Prima, no local onde ainda hoje se encontra. Para se aperfeiçoar, escolheu Itália, primeiro um pequeno estágio no Tripini, em Orvieto, depois um mês e meio no Gambero Rosso, em Bari. Deu-se a inflexão profissional que Giovanni sabia que tinha de acontecer, passando a dedicar-se ao receituário clássico italiano e à cozinha mais elaborada de matriz mediterrânica. 2009 é por isso o ano da autonomização definitiva do chef Sapkota, permitindo-se chamar verdadeiramente seus aos pratos que oferece no Come Prima. O que hoje se chama cozinha de autor.
No tempo da trufa branca de Alba, entre Outubro e Janeiro de cada ano, ano após ano recebe o produto na sua cozinha, que processa como ninguém. No passado houve alguns cozinheiros que ousaram propor menus de trufa branca, mas hoje apenas Tanka "Giovanni" Sapkota tem uma oferta consistente, com que podemos contar.
Antes da certificação - mero pro forma a que o cozinheiro quis atender - já Sapkota tinha todo um trabalho de ensaios com farinhas, produzindo por exemplo fermento natural, para melhorar a qualidade das suas pizzas. Está a desenvolver neste momento um trabalho de grande valor, com produtos tradicionais portugueses, em busca da frescura e combinações únicas que a nossa cozinha consegue oferecer. E está com a ideia fixa de plantar um olival com as nossas variedades... no Nepal. Quer produzir azeite na sua terra natal e está convicto de que vai conseguir. Alguém se atreve a duvidar?

(Notícias Magazine #1160, de 14.Ago.17)