quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

As bolas e a praia

Os areais da linha, de Algés a Cascais, eram há cinco décadas lugares que serviam para fazer vida de praia. Nós vivíamos na Estrela e no mês de Julho mudávamos-nos para Santo Amaro de Oeiras de armas e bagagens, para voltarmos apenas um mês depois. Nem se falava em vir a Lisboa. Era muito longe. Ainda passeei à beira-mar com uma tia-avó na que ela insistia em chamar praia de Algés, mais ou menos em frente a Pedrouços, hoje coisa vastamente impensável. Este tipo de perplexidades fazem-me sentir um bocado dinossauro e se não tivesse a certeza absoluta, diria que nunca estas coisas tinham acontecido. Mas não só aconteceram como há mais, do tempo deste microjurássico. Depositados na praia com um ou dois adultos para tomar conta de nós, todos os primos, entrávamos no ciclo do costume dos banhos, brincadeira e futebol – era giríssimo fazer túneis na areia molhada, imagine-se! – e mais ou menos a meio da manhã aparecia uma senhora vestida de branco com uma caixa metálica grande vermelha sobre a cabeça. Lia-se “Maria dos Bolos” e todos sabíamos o que lá vinha dentro. Bolas de Berlim quentinhas, acabadas de fazer na padaria, recheadas com um creme pasteleiro que ainda hoje tenho na memória. Era um momento mágico, o da distribuição das bolas, verdadeira maravilha. Havia quem fosse do contra e preferisse um jesuíta, um éclair ou um pastel de nata. A maioria, contudo, optava pela bola, que uma prima minha dizer ser “de berlinde”. A mesma que quando ia à água, os pés desapareciam para debaixo da areia molhada, e gritava desalmadamente que “estava fora de pé”. Rábulas que se transformaram em memórias cheias de ternura. Muita areia trinquei eu, deixava cair a minha bola ao chão muitas vezes e depois não conseguia sacudir suficientemente o que vinha com a superfície peganhenta do bolo, resultado da fritura em óleo. Fazia parte, tudo fazia parte.
Mais tarde viria o homem da Olá, também ele vestido de branco e com uma sacola pesada a tiracolo, onde trazia os gelados do nosso contentamento. Recolhíamos a casa por volta da hora do almoço, para as bicicletas, os jogos e às vezes o cinema. Tenho uma certa dificuldade em olhar para uma bola de Berlim sem me vir à cabeça a praia da infância e por que se chama assim. Da primeira acabei de tratar, da segunda é simples: o bolo é uma cópia de um bolo fechado, massa semelhante e também ele frito, chamado “berliner”, ou seja, de Berlim. Na capital germânica, encontra-se um recheio de compota de fruta no interior, mas no exterior é totalmente homogéneo. Cortado e recheado com creme pasteleiro, parece que só nós. E continuamos a produzi-lo, apesar do desmazelo do emprego dos malditos “mixs”, que atiraram a nossa tão original pastelaria para as catacumbas, prisioneiras dos grandes fabricantes de massas, recheios e preparados. As pastelarias, por sua vez, mesmo muitas das que reclamam “fabrico próprio” nos seus toldos, mais não fazem que levar mixs ao forno. Parecemos tolos.

Nem tudo está perdido

Descanse quem pensa que o meu discurso vai azedar, nada disso. Como sempre e em tudo na vida, fixo-me nos bons exemplos e nas coisas positivas. A venda dos bolos na praia, essa é que está comprometida porque parece que têm de andar em embalagens herméticas além de outras exigências, em que prefiro não me deter. Sobre os bolos, mesmo os mais triviais temos a Norte um luzeiro seguro, de seu nome Francisco Gomes, proprietário da pastelaria Colonial, em Barcelos. Dedica-se a alta pastelaria, do mais alto nível, e, imagine-se, preocupa-se muito com os “clássicos” e triviais bolos da nossa história. Pão-de-ló e bolo rei, são assunto sério e recorrente na fantasia do grande pasteleiro. Sobre os dramas dos mixs e da perda de interesse da maioria em relação por exemplo, ao verdadeiro bolo de arroz, deu em que hoje numa pastelaria um queque e um bolo de arroz tenham o mesmo sabor horrível e a mesma gordura insuportável. Quem se lembra de comer um bolo de arroz a sério? O nome deve-se à utilização de um terço de farinha de arroz e dois terços de farinha de trigo e é tão simples de fazer como de cozer. Ainda por cima, pode fazer-se em casa! Acabados de fazer e arrefecer, são gloriosos, não é preciso ir muito longe para conseguir a receita original, qualquer pesquisa na net lhe dá a configuração certa. Aliás, de todos os bolos de mão vendidos normalmente nas pastelarias só o pastel de nata não se pode produzir num forno doméstico. Não pode? Não, não pode, a cozedura tem de acontecer entre 380 e 420 graus centígrados, quando os fornos domésticos não passam dos 300. É claro que se faz, mas mal, mas já sabemos que isso deixou de importar. Não são os supostos concursos do melhor pastel de nata que o estão a salvar; havia que ser pedagógico e atento. A massa folhada tem de estar estaladiça e coesa, impecavelmente cozida, enquanto o recheio tem de ficar com uma textura ligada mas quase liquefeita. Em vez disso, são-nos servidos pudins, prolongar o tempo de cozedura é a única forma de nos fornos menos potentes se conseguir cozer a massa.
De repente, vem-me o pregão da Maria dos Bolos à mente: “Olhá bolinha de Berlim fresquinha”. Tenho de ir.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Michelin 2015: Portugal atinge a excelência (NM)


O guia vermelho Michelin 2015 para Portugal e Espanha acaba de ser anunciado, com uma extraordinária notícia para o nosso país: José Avillez é o primeiro chef português a alcançar duas estrelas, com o seu Belcanto. Outros dois portugueses, Leonel Pereira e Pedro Lemos, acrescentaram uma estrela cada um à constelação nacional. Estamos no bom caminho.

A provecta idade de 114 anos não tolhe os movimentos nem o respeito do mais famoso guia de restaurantes do mundo e continua a provocar o mesmo suspense sempre que se aproxima a data de lançamento em cada país. Claro que as coisas mudaram muito, o mundo hoje é todo um outro, em todas as frentes. As comunicações evoluíram como sabemos e é impossível conter a vaga gigante de "novos críticos" que invadiu o ciberespaço. Se ir a um restaurante famoso é notícia, publicar uma crítica é muito mais. A essência e potência de ferramentas como TripAdvisor e Zagat está de resto na aparente democratização e efeito directo de "ajuste de contas" que permite; da necessidade absoluta de impor uma opinião, por injusta e disparatada que seja. Há fóruns de partilha de opinião e avaliação de restaurantes espalhados por todo o mundo, nos quais mal ou bem vai-se construindo conhecimento em suporte virtual. E há blogs mais ou menos responsáveis, que vão tacteando os princípios do jornalismo e dando notícias às comunidades de seguidores que os seguem. Hoje googla-se o nome de um chef ou restaurante e encontra-se informação abundante, parte da qual até dispensamos, tal o nível particular e detalhado a que se chega. Acabo de fazer isso eu próprio com o nome de Bernard Loiseau, para ver chapado o que não me interessa, de todo em todo, para mais na wikipedia, o assunto do seu suicídio em 2003, supostamente cometido quando leu no Le Figaro a notícia de que iria perder o estatuto de três estrelas Michelin, que detinha desde 1991. Paul Bocuse afirmou então que o que desmoralizou o seu pupilo dourado da Borgonha foi primeiro a descida de 19 para 17 valores no guia GaultMillau, depois um par de artigos de jornal demolidores sobre a sua cozinha e a forma como se tinha perdido de si próprio enquanto chef, criando uma máquina empresarial muito pesada que chegou a estar cotada em bolsa. Nem a sua fantástica e prodigiosa companheira de vida, Dominique, mãe dos seus três filhos conseguiu demovê-lo da ideia fixa de que ele tinha sempre de ser o melhor, nunca aceitaria cair. Os detalhes sucedem-se para quem quiser saber mais, mas o que na altura se lavrou por toda a parte e o que ainda hoje aparece no google é que Benard Loiseau pôs termo à sua vida por recear perder as estrelas Michelin. Para que serviu e serve este tipo de informação? Para acicatar ainda mais a animosidade contra o guia vermelho. Que é o guia que todos adoram odiar.
Foi um privilégio enorme para mim coordenar a edição de Abril de 2012 da revista Evasões, inteiramente dedicada ao guia Michelin. Contámos com a colaboração da equipa Michelin sediada em Madrid, onde estive com o então director do Guia conjunto de Portugal e Espanha, Fernando Rubiato e que nos dá a entrevista central do trabalho. Tive oportunidade de conversar desassombradamente sobre a aflição que eu levava no alforge, creio que em nome dos portugueses. Por que não tínhamos mais estrelas, por que era tão mais fecunda em estrelas Espanha que Portugal, e algumas outras questões. Há um momento da entrevista que recordo com nitidez, aquele em que Rubiato me diz que que a Michelin é como um navio de grandes dimensões; segue com segurança a rota programada, o que é bom, mas tem dificuldade em mudar rapidamente de rota o que pode ser menos bom. Na conversa revelou conhecer a fundo o nosso sistema de comunicação informação, em particular blogs, fóruns, revistas, guias e até programas de televisão. O meu sentimento nacional foi particularmente interpelado quando ouvi o director do guia ibérico dizer que a informação que aparece é contraditória. "O melhor para uns é o pior para outros". Não valia a pena refutar, ele tinha ali à mão um arquivo com tudo o que por cá se dizia e publicava. Entristecido, tive de lhe dar razão, perante os factos não havia argumentos. Cingiu o nosso historial estrelado desde 1974 até aos nossos dias - lista que publicámos na dita edição da Evasões - demonstrando como o tempo acabava por dar razão à avaliação feita. Mais que premiar um restaurante, avalia-se a solidez do seu projecto e, assim, garante-se a durabilidade da distinção. O que está no prato é determinante, mas um restaurante deve ser avaliado também e sobretudo como empresa. Os inspectores Michelin têm, todos eles, pelo menos 6 anos de experiência de direcção hoteleira. Nenhum é jornalista nem crítico gastronómico. E todos são empregados do guia em regime de exclusividade. A estupefacção com que em Portugal temos recebido ano após ano a lista dos estabelecimentos distinguidos com estrelas no guia Michelin, apesar dos contornos de injustiça, tem provavelmente razões por detrás que nos escapam. Os restaurantes podem e devem perguntar a Madrid o que se passou e quais as razões de uma despromoção ou de uma ausência, no entanto há que dizer que de cá raramente se liga para lá. Podem e devem ligar se nunca foram visitados e pretendem mostrar os seus trunfos culinários e as suas casas, dizendo explicitamente que querem ser avaliados; não tem sentido a falta de coragem que dizem sentir os proprietários de restaurantes e os chefs a quem digo isto. Acreditam ou não no seu valor? E quem visita enquanto cliente determinado restaurante também pode e deve dar o seu feedback para a Michelin. Um imperativo de consciência a cumprir por quem sente a necessidade absoluta de contribuir para uma melhor leitura internacional das casas portuguesas. Como se faz? Simples. Ir ao site viamichelin.com e enviar a sua opinião, identificando-se claramente e deixando os contactos. Fica desde já a saber que se enviar opiniões negativas, está em linha com a maioria das pessoas que dá feedback para a Michelin; raros são os que enviam retorno favorável sobre uma casa. Lamentável, mas verdade.

Estamos em festa

O navio grande de que falei atrás parece finalmente ter orientado a sua rota para os valores nacionais. José Avillez vê coroado o trabalho notável da sua equipa com a segunda estrela Michelin, dado duplamente inédito, por se tratar de um chef português e de um restaurante lisboeta: o Belcanto. Quem conhece esta casa sabe que é lugar mágico, de serviço irrepreensível e de uma qualidade que não se conhecia de mão portuguesa. Esteve para acontecer no ano passado mas o tal "navio" achou que não havia condições para ancorar. Ninguém desarmou, antes se trabalhou com mais afinco, pude atestá-lo e dá-lo a atestar num almoço com o amigo José Peñin, decano dos críticos espanhóis de vinhos, em Junho deste ano. Grande grande casa está aqui, proibido falar de sorte, falemos antes de trabalho. Os outros biestrelados nacionais, Vila Joya (Galé) e Ocean (Vila Vita Parc, Alporchinhos), com vista um para o outro através da grande baía de Armação de Pera, estão sólidos nos respectivos postos. Penso contudo que é inevitável a terceira estrela para o Ocean no próximo ano, já que neste a teimosa âncora decidiu não se soltar. O trabalho de sabor e gosto de Dieter Koschina no Vila Joya preenche-nos talvez mais, mas o primor de Hans Neuner no Ocean é de ir às lágrimas; já me aconteceu.
Depois é só de uma estrela que falamos. É comovente o extraordinário desempenho de Leonel Pereira no São Gabriel, em Almancil. Alguns meses após a sua chegada àquela casa, e sem inspector algum a ter visitado, perdeu a estrela. A explicação nada tem a ver com o chef, o que aconteceu foi que a empresa mudou de mãos, o que na lógica Michelin implica sempre pelo menos a reserva para o ano seguinte. O que posso dizer é que estão melhores que nunca, São Gabriel e Leonel. É glorioso ver o algarvio a vencer na sua terra, estrela portanto mais que merecida. Definitivamente, a marcar na agenda. Já que estamos no Algarve, fazemos a vénia a Henrique Leis (Almancil), brasileiro biónico e mestre da boa disposição, por manter a sua estrela e pela felicidade que transmite a todos os que o visitam, e a Willie Wurger (Vilamoura) pela tenacidade com que diariamente enfrenta a clientela do seu Willie's. Reconheço contudo que cheguei a temer pela queda da sua única estrela. Não perdeu, ainda bem.
Benoit Synthon, chef do madeirense Il Gallo d'Oro, restaurante do Cliff Bay, manteve a sua estrela, bem segura e alavancada na equipa excelente que soube montar tranquilamente. É a terceira vez consecutiva que lhe é atribuída, e agora, que o grupo se prepara para abrir uma nova unidade em Lisboa, vai uma vez mais ser posto à prova. Miguel Laffan continua com o seu pensamento muito estruturado e uma autonomia de trabalho notável, contrariando a lógica de desterro que muitos vaticinavam. O L'And Vineyards (Montemor-o-Novo, está definitivamente na calha, a bater à porta da consciência dos muitos alentejanos teimosos que insistem em resistir à visita. Não é favor nenhum, conhecer a cozinha de grande recorte técnico e de sabores profundos do chef cascaense, advogado indefectível da cozinha de proximidade e de raízes. A Grande Lisboa viu confirmadas as estrelas do Eleven e Fortaleza do Guincho, com que é preciso estar de acordo, Joachim Korper é o mestre de nível galáctico que todos os dias garante luxo à mesa, com o Tejo ao fundo, assim como Vincent Farges no Guincho, com o oceano inteiro. Fica, a propósito e mais uma vez, a segunda estrela por dar. Melhor do que ali se faz é impossível, só não concorda quem não conhece, o que se resolve facilmente, tal a proximidade da capital. O Grande Porto também marcou e como! Ricardo Costa, no seu glorioso reduto de Gaia que dá pelo nome de Yeatman, balaustrada mirante sobre o Porto e a Ribeira. Continua grande apóstolo do produto e defensor de uma simplicidade de sabor que põe nota fortíssima na cozinha. Está para durar e, quem sabe, crescer para a segunda, esta estrela boa. Pedro Lemos conseguiu a sua primeira estrela, para o restaurante com o seu nome, na Foz Velha. Ao contrário do que tem sido escrito não é a primeira estrela Michelin do Porto, há que recordar o Portucale, ainda aberto mas já sem estrela, e o Garrafão, em Leça, que já não existe. Pedro Lemos é possuidor de um enorme talento e tem a escola de Aimé Barroyer, com quem esteve mais de seis anos no Pestana Palace, em Lisboa. Liberdade criativa, técnica irrepreensível e assemblagem de pratos de perfil moderno, como se pretende e impõe. Termino a elencagem com o Casa da Calçada (Amarante), para destacar o fabuloso desempenho de Vítor Matos na cozinha. Viu reconhecido o seu trabalho ao manter a estrela, espero que a empresa lhe dê sempre condições para fazer o seu trabalho com serenidade e a felicidade que todos queremos ver no rosto de quem trabalha na linha da frente da nossa alta cozinha. Apesar das vicissitudes e do ambiente de crise em que estamos imersos, estamos melhor que nunca. Agora é não parar.