terça-feira, 9 de junho de 2015

De vez em quando, a profissão

Sobre Ironia
(de Cartas a um jovem poeta, de R.-M. Rilke)

"Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para os objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que a beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade de seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte."

Tenho tido o enorme privilégio de trabalhar de perto com pessoas virtuosas, que tenho visto crescer interiormente e consolidar com a experiência um compacto de conhecimento que muito poucos conseguem alcançar. Está sempre tudo ainda por fazer, o caminho perde-se ainda no horizonte, lá longe. Até à "catedral" de Claudel, há muito por fazer, talvez toda uma vida. Mas é caminho. A opção pela humildade - não confundir com humilhação - e o repúdio da ironia asseguram a aportagem segura.

E não se trata de andar "só" a comer pelas mesas deste país, é um trabalho de luta pela autenticidade e genuinidade dos produtos; Respeito pelas regiões e proximidade; Reconhecimento e distinção do que se distingue do resto. Vinhos, comida, receitas, casas, e sobretudo pessoas extraordinárias, que não sairão mais dos nossos corações. É um trabalho de grande entrega. E é por isso mesmo que ninguém sabe mais que ninguém.

É preciso ter a coragem de assumir e ousar. Ousar sempre.

Agora que sei que é possível comungar de forma imanente estas coisas com alguém e partilhá-las sempre, dou por mim a desejar que os meus filhos consigam pegar em dois ou três fios disto que me ocupa o tempo todo e os liguem à catedral que eu, confesso, apenas intuo.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Caracóis e Alta Cozinha

Quando pensamos que um pratinho de caracóis com molho, servido numa esplanada soalheira ao fim da tarde, é coisa popular e acessível, temos de pensar de novo. O minúsculo molusco gastrópode intriga e interessa aos melhores cozinheiros do mundo a ponto de merecer a aplicação total do seu talento e tempo. Coisa de alta cozinha.

Foi no início de do Séc. XIX que o "grand chef" Antonin Carême, borgonhês de gema, recebeu a encomenda de um prato especial que surpreendesse tudo e todos num jantar de homenagem ao czar Alexandre I. Teve o genial cozinheiro a ideia fundadora de preencher os ocos dos caracóis da sua Borgonha com manteiga e alho e levá-los ao forno quente. Êxito total, e início de uma era refinada e requinta, em todo o globo. Um costume popular que visava sobretudo a erradicação de uma praga dos campos, mascarando-a de petisco, chegava aos píncaros da cozinha; às mesas mais nobres. O receituário é hoje longo, nalgumas declinações mais simples de produzir que noutras, seguindo sempre o mesmo fio condutor, que é o sabor. Aromatizamos, enfarinhamos, grelhamos, temperamos, marinamos, panamos, gratinamos, e o sabor do gastrópode faz esquecer o ódio ao bicho que devasta 10 ha de verdura em meio dia. Andam devagar mas sustentadamente, e comem tudo por onde passam; uma verdadeira tragédia. Os criadores de caracóis em estufas têm planos de contingência muito apertados, pois qualquer fuga pode significar uma hecatombe na população mais próxima. Por outro lado, é raro o português que ao fim de semana não vai por esta altura aos caracóis, há-os à meia dúzia por planta. Em casa, lava-se e lava-se a um estrugido de azeite, cebola, alho e louro, depois cobertos com água e vinho branco e ao fim de uma hora estão prontos a temperar e servir os bicharocos, que se exploram à mesa com palitos, gargalhadas e vinho branco, assessorados por pão e manteiga. Portugal no seu melhor.
A oferta aumentou. Não precisamos mais de ir apanhar caracóis nem gastar o nosso precioso tempo a arranjá-los, as opções são múltiplas para quem não dispensa a vagarosa criatura que leva a casa às costas. A receita próxima da de Carême, por exemplo, está hoje disponível em cuvetes com 6, 8 ou 12 unidades, ultracongeladas, que é só levar ao forno. Também encontramos caracóis de conserva, em frascos e latas, e podemos cozinhar de imediato como se fossem nossos. E usamos especiarias, tais como pimenta, caril, noz-moscada, curcuma, orégãos, pimenta e sementes diversas para chegar ao sabor que pretendemos. Os aromáticos salsa, coentros, menta, sálvia, alho, anis também saem para abrilhantar as coisas ainda mais. E processamos legumes diversos para os acompanhar, principalmente tomate, funcho, cogumelos, batatas e espinafres. Depois e sempre, manteigas, óleos, azeites, e os competentes toucinho, anchovas, queijo, massas folhadas e quebradas para produzir pasteis e tartes maravilha. Inefável, depois de conseguirmos aquela receita afinada, um guisadinho de caracóis, entrada de grande efeito entre amigos ou a dois.
Enganámo-nos quando achámos que os nossos chefs iriam declinar o nosso convite, de criar receitas com caracóis para a Evasões. Não só aceitaram instantaneamente o desafio como surpreenderam e impressionaram, o que prova que o caracol e a caracoleta - caracol grande - estão sempre próximos do coração dos inovadores. O fenómeno continua a dar que falar e fazer. José Avillez, do Belcanto, em Lisboa, abraçou a ideia com os ovos de caracol em mente. "A ideia foi servir um caviar da terra com sabor delicado e bem crocante". O xerém de caracóis, enguia fumada e ovos de caracol que criou significa uma "ligação do mar à montanha através de dois ingredientes algo controversos mas que são maravilhosos". Já Kiko Martins (Cevicheria e Talho, ambos em Lisboa), seguiu uma linha purista e - pareceu-nos - quis, com um brilhante tártaro de salmonete com caracóis e maionese de lima e gengibre, recriar a proximidade do salmonete de Sesimbra e caracóis de Setúbal. Bem, dizemos nós. O périplo tinha de incluir Walter Blasevic, do Lisboète, em Lisboa, cozinheiro de escola de alta cozinha francesa felizmente agora a oficiar para os alfacinhas. Deu uma no cravo outra na ferradura! A entrada canónica de de caracóis em persillade sobre royal de alho, coulis de grelos e pimentão doce, evoca claramente a bandeira bourguignonne; e o lombo de bacalhau fresco assado, batatinha recheada com caracóis, pezinho de porco frito e chouriço representa o total controlo e compreensão do gosto português, numa interpretação sofisticada. As soluções apresentadas pelos três chefs não estão necessariamente nas respectivas cartas. E se lhes exigíssemos?