quinta-feira, 31 de março de 2016

Vai uma mariscada diferente?

Comprando bem e cozinhando seguindo alguns princípios básicos, a nossa casa pode tornar-se a melhor marisqueira do bairro. E, como no nosso cantinho somos nós que fazemos as regras, até podemos ir mais longe na sequência e sabores.

Em princípio, a cozinha dita tradicional portuguesa não coloca limitações à criatividade culinária. Bem ao contrário é dentre todas as cozinhas do mundo provavelmente a que mais se oferece ao talento dos cozinheiros, para que a desenvolvam dentro dos parâmetros admissíveis, que são os do sabor português. O tomate e a batata, o primeiro antes da segunda, foram graciosamente absorvidos pela nossa cozinha, e hoje são dois dos seus pilares. Em vez de ameaçar ou destruir, serviram para elevar até mais alto o edifício da tradição culinária de Portugal. O marisco, contudo, continua a manter-se numa espécie de letargia, apesar de ser a família alimentar mais rica em texturas, sabores e aromas. Talvez obcecados pela apresentação “ao natural”, que quer dizer cozidos em água e sal na maioria dos mariscos, totalmente crus no caso das ostras, compramos às vezes produto fantástico e depois em casa não sabemos o que havemos de fazer com ele. Nas boas e movimentadas marisqueiras – por exemplo Nunes e Relento, em Lisboa; Esplanada e Gaveto, no Porto - conseguimos ter acesso a marisco de muito boa qualidade, a preços que não conseguimos, nós próprios, no comércio que frequentamos. Logo que nos afastamos da excelência, ficamos a perder, por as coisas não serem feitas exactamente como queríamos; porque o molho tártaro não tem as alcaparras que gostávamos; a maionese é industrial; os percebes não têm sabor; as canilhas estão encruadas; os lagostins parecem de água doce; etc. E no fim, sai uma conta calada, de que no espaço de quinze dias nos esquecemos e repetimos a graça. Esta precipitação para o produto pronto tem base na constatação menos feliz que é a de que nas cidades as pessoas deixaram de cozinhar marisco nas suas casas. Sondámos alguns consumidores e percebemos que a falta maior é a de uma tabela de cozeduras. A título exemplificativo deixamos-lhe uma tabela, juntamente com algumas sugestões diferentes de serviço que vão fazer da sua casa a mais especial das mesas para petiscar marisco. Uma última chamada de atenção, para os preços que vai encontrar no mercado. Antes de comprar, confira a origem. O marisco nacional é sempre mais caro, porque as nossas águas são frias. Vindo de Cuba, ou de águas tropicais africanas, é bastante mais barato porque nas correntes quentes o marisco desenvolve-se 3 a 7 vezes mais depressa. Uma lagosta de 1,5 kg apanhada em águas portuguesas deve ter entre 25 e 30 anos, enquanto uma lagosta de 2 kg vinda de cuba tem menos de 7! É maior, é certo, e mais barata, mas o sabor…

As cozeduras e o serviço

Deve levar-se a ferver primeiro água com cerca de 60 g/l de sal e depois imergir o marisco que se quer cozer. Os tempos indicados correspondem ao tempo após levantar fervura de novo.
Não utilize panela de pressão para cozer o marisco; é um reduto utilizado pelas marisqueiras face ao volume de clientes e tempos de atendimento que têm de ser respeitados. Diminui muito a qualidade.
O marisco deve estar totalmente coberto de água, cerca de um dedo acima.
Os bivalves devem ser apenas levados ao calor até abrir. Tanto pode ser numa frigideira - ou wok - em seco como numa grelha nas brasas, caso em que ficam com um agradável aroma fumado.

(Nota: preços mínimos por kg)

Percebes (10 Eur)
45 seg
Experimente servir com as unhas abertas em dois; é a parte mais saborosa! Ou bolinhas de massa de pastel de bacalhau com miolo de um percebe dentro de cada uma.

Camarão/Gamba (8 Eur)
Entre 20 seg (pequeno) e 4 min (grande, tipo tigre)
Sirva sobre uma carapinhada de lima e melancia, bem gelada.

Lagosta (20 Eur)
Entre 13 min (pequena, 800g-1kg) e 33 min (grande, 2 kg)
Sirva com azeite morno com um pouco de rosmaninho.

Bruxinha (30 Eur)
Cerca de 8 min
Faça uma saladinha de toranja e mel de acácia.

Lagostim (40 Eur)
Entre 15 min (médio, 120g) e 20 min (grande, 140g)
Sirva com molho tártaro.

Lavagante (25 Eur)
Entre 15 min (pequeno, 1 kg) e 35 min (grande, 2,5 kg)
Maionese com piri-piri.

Navalheira (8 Eur)
7 min
Faça uma brunesa tricolor de pimentos e regue com um vinagrete de hortelã da ribeira.

Sapateira (7 Eur) e Santola (12 Eur)
20 min, para a bitola pequena (1kg) existente no mercado
Procure a forma tradicional “santola no carro”, a partir da receita vão surgir-lhe muitas ideias. Na falta delas, torradinhas com manteiga vão muito bem.

Búzio (6 Eur)
18 min
Canilha (7 Eur)
35 min
Buzina (10 Eur)
70 min
Burrié (7 Eur)
4 min
Experimente fazer um creme de amêndoas com um pouco de aipo para acompanhar estes quatro mariscos, montados em tostas. Em alternativa às amêndoas, use feijão branco e faça um creme gelado.

Bivalves
Tal como se disse acima, abrir no calor e não deixar cozer mais.
A grande forma de confecção da cascaria é à Bulhão Pato, qualquer desvio desta técnica é fazer por menos. O mexilhão aberto nas brasas - assente nelas directamente - é glorioso. A ostra quer-se crua, sem nada.

(Notícias Magazine #1109)

A idade da lagosta


Parece uma mola a nadar, arqueando vigorosamente o corpo para expelir violentamente a água acumulada na súbita concavidade. É um dos mariscos mais apreciados entre nós mas estamos um pouco nas mãos de quem nos serve, em matéria de verdade acerca de cada bicho.

Há cerca de 500 milhões de anos, andavam em terra e só em terra os antepassados da lagosta e do lavagante. O tempo que passou deu para construir uma história gigante deste artrópode, que apesar do aspecto espinhudo e medonho, é da mesma família que o simpático bichinho-de-conta que anda tranquilo pelos nossos jardins. É, em simultâneo, a mais adaptável do reino animal, com uma longa história de adaptação a habitats diferente e várias mutações genéticas pelo caminho. E no entanto, é dos animais que, vivos, nos inpira as moções mais vagarosas e intemporais. Tanto, que nas cervejarias e marisqueiras ninguém sabe dizer-nos ao certo quantos anos tem uma lagosta e, quando supostamente sabem, a resposta é diferente de dia para dia. Aconselho a compra de um caderninho só para registar as diversas interpretações que aqui e ali vão sendo feitas. Espantoso como um produto caro e sofisticado da nossa mesa como é a lagosta não tenha nem da parte de quem nos serve como de quem consome um pouco mais de consideração. Em clara oposição de fase por exemplo com o cordeiro, borrego, cabrito e cabra velha, quando temos aplicações culinárias tão específicas para cada fase de crescimento de um mesmo animal. Ou com a vitela branca, vitela, novilho, boi e touro de lide, aqui já no tocante à alimentação e tipo de crescimento proporcionado a cada bicho. Conhecemos, tipificamos e cadastramos tudo, especialmente se houver certificações DOP pendentes. No peixe e no marisco, ataca-nos a torpeza, inexplicavelmente e então vigiamos menos. Quando estamos a falar de produtos caros – e raros – é um pouco surpreendente.
A lagosta, com o seu exoesqueleto, à semelhança dos outros artrópodes, vai crescendo com vigor, mas a partir de certa altura tem dificuldade em continuar a sua vida dentro de uma carapaça inflexível, feita couraça. Esse “limiar de conformação” atinge-se a cada 3 centímetros que o crustáceo cresce; depois disso tem de mudar de casca. Por ano, não cresce mais do que cerca de 2,5 centímetros, se for criado nas nossas águas junto à rocha que são, como é sabido bastante frias. Tudo contabilizado, com o que se disse e o que não se disse, uma lagosta de cerca de um quilo e meio, com 25 cm, terá entre 25 e 30 anos de idade. Se for criada em águas mais quentes, por exemplo nas correntes subtropicais, atinge estatura semelhante em apenas 7 anos. Há registos de lagostas que foram classificadas como tendo mais de 200 anos, dá para imaginar o tamanho colossal que terão atingido, sem nunca se afastar das correntes e canais mais quentes. Está bom de ver o recurso fácil e o atalho de caminho que pode ser ir buscar marisco às paragens de Mauritânia e próximas. A lagosta gosta, de facto, de se chegar às correntes quentes, não só porque medra melhor, mas também porque tudo acontece mais depressa. A carne, contudo, não é sequer semelhante à dos exemplares criados nas nossas águas. Falta-lhe sobretudo consistência, e o sabor é bastante mais brando. Quem já provou os famosos lavagantes do Maine (EUA), sabe do que se trata; muita carne para trincar, mas muito pouco ou nenhum sabor, mais parecendo um sucedâneo do que delícia.
O acesso que temos à informação e à origem do que compramos ou consumimos, obriga-nos hoje a ter uma atitude lúcida face ao que escolhemos para levar para casa ou consumir no restaurante. E depois, podemos sempre ir pelo nosso gosto, educando-o. Sempre que não for requintado, vibrante e profundo numa lagosta que nos estão a servir, temos pelo menos de indagar porquê. Há assuntos em que, mesmo que não tenhamos todas as respostas, podemos fazer as perguntas certas.

(Evasões Ago'13)

quinta-feira, 17 de março de 2016

A cozinha francesa, a grande plataforma.

Se eventualmente desaparecer, terá deixado a sua marca em todo o mundo e em todas as cozinhas dos diversos países, com as suas técnicas, receitas, e produtos. França é ainda e será por muitos e bons anos, sinónimo de cozinha.

Olhar para a cozinha francesa e descrevê-la em poucas palavras é como resumir os corredores e alas de um grande museu sem falhar os quadros principais. Num caso e noutro, o detalhe é tudo. Não há percursos vol d’oiseau que lhes façam justiça, mas vale abdicar do todo e fixar-nos em pequenas partes. A sopa de cebola é para mim obrigatória e fundadora, sempre que abordo o assunto da cozinha francesa. Historicamente, perde-se nas brumas do tempo, se nalgum momento o gigantesco carro alegórico que é o receituário francês foi prancha simples com rodas rústicas, foi nesse, desconhecido, dos caldos com pão, base mediterrânea por excelência. Coisa romana, se quisermos, com Apício, no início da era cristã, ou grega se abrirmos bem os olhos, com Arquéstrato, no início do séc. IV a.C. Sopa quer realmente dizer caldo com pão e é justamente nos caldos que está a grande origem da cozinha francesa. O “fond de veau”, ou caldo de vitela, é na escala de Brillat-Savarin, na sua obra-âncora “A fisiologia do gosto”, o preparado culinário que mais “osmezoma” apresenta, dentre todos. Definiu-a como o “quinto sabor”, ou o sabor do que sabe bem, e disse que “ainda se ia falar muito dele”. Notável como ao darmos com o “umami” da cozinha japonesa encontramos um trabalho idêntico, tanto de busca de perfeição como de culto do sabor e da sofisticação. No caso oriental, o caldo dashi, feito com camarão seco e algas, é o que contém mais umami, cerca do dobro do caldo de vitela. Acima dele, está o extremo da escala que é imagine-se, o leite materno. Dez vezes o caldo de vitela, vinte o dashi. A sopa de cebola é a fervura do legume em caldo de carne, que se produz depois de se reservar o primeiro caldo. Exagero no detalhe, é imperativo fazê-lo, estamos na ala principal do grande museu. Junta-se à sopa de cebola pedaços de pão torrado e queijo e tem-se o grande clássico da cozinha francesa. Os caldos e os molhos, fundamentais na organização enciclopédica gaulesa, são coisa para levar a sério. O vinho é para levar ainda mais a sério em França, e talvez só ali seja absolutamente indispensável para a leitura correcta da cozinha. Começa nas marinadas, passa pelas muitas receitas que contemplam o vinho com o ingrediente nobre - deixem-me confessar o “parti pris” pela fabulosa galinha de Bresse com morilles em vin jaune do Jura - e termina com a quase obsessiva harmonização perfeita de cada especialidade com um vinho. Esta última é uma actividade que cada francês chama a si e que encosta ao peito com devoção. E defende os seus queijos com a vida. 45 denominações de origem controlada e 38 indicações geográficas protegidas num total de mais de mil queijos diferentes registados actualmente em produção, dá para perceber a sua relevância à mesa. Uma sondagem feita há cerca de 10 anos revelou que cerca de 5% de dos consumidores acham que podem alimentar-se apenas de queijo. Na verdade, além do prazer está a conserva, aquilo que se faz para comer mais tarde. Exactamente como o foie gras, o fígado gordo de ganso ou pato que sujeito à transformação ligeira “mi-cuit” - sensivelmente meia hora a 80 graus - se conserva por cerca de 2 anos sem perder características nutritivas. Para nós é luxo, no sudoeste francês é produto de subsistência, iguaria camponesa. Estamos na zona dos “confit”, que por cá dizemos confitado e que quer dizer conserva, originalmente nas artes doceiras, porque era os açúcares dos frutos que se confitava, produzindo conservas - confits - para guardar. Nota importante para quem acha que a cozinha francesa desperdiça e esbanja muito, porque não pode haver ideia mais errada. As duas últimas décadas assistiram a uma das maiores revoluções na história da alimentação, com a fixação de territórios óptimos para produção de… legumes! Alain Passard tem três estrelas Michelin no seu restaurante parisiense Arpège - tenho de o citar porque continua a ser a minha melhor refeição até hoje e já foi em 2002 -, onde mostra parte da sua arte e fala de bizarrias como os eixos irregulares da raiz do nabo. Não entende França quem não se interessa pela alta cozinha, que hoje se declina assim, no detalhe e vida de um ingrediente simples. Espírito de banquete, obsessão de relojoeiro. Por outro lado, a cozinha francesa exige por vezes cozeduras de horas a fio, quando não de mais de um dia. Dois bons exemplos disso são as coxas de pato confitadas na sua própria gordura - é normal durar 36 horas - e o célebre “boeuf bourguignon”, estufado lento de carne de vaca em vinho tinto. Duas maravilhas alquímicas de flexibilidade ilimitada. Dois grandes amigos do vinho, além disso. Mas não se pense que a cozinha tradicional francesa é toda ela demorada e longa. Sofisticação não se compra com tempo, mas sim com “savoir-faire”. Inefável o magret de pato, que nunca pode sair do registo de muito mal passado e aceita mel, frutos vermelhos, laranja, marmelos como assessores. Brilhante um serviço de ostras ao natural, peixes ao vapor, e as saladas de tudo com quase tudo. As flores, a festa das ervas - fines-herbes -, as essências, as trufas e as batatas. As vieiras da Normandia, a flor de sal da Camarga e o eixo invisível mas que se sente e atravessa toda a França, e vai das natas, ao azeite, passando pela fabulosa diversidade de manteigas, incluindo a categoria “demi sel”, ou meio-sal, que tanta falta nos faz por cá. As tartes - quiches - de praticamente tudo marcam presença no nosso próprio quotidiano, como se tivessem cá nascido, variando na riqueza, complexidade e custo, mas alimentam bem por pouco dinheiro; outro desígnio da cozinha francesa, corolário dos muitos aproveitamentos que contempla. Gigante é também a doçaria, todo um edifício colossal, verdadeiro monumento que fixou receitas tão simples quanto a tarte Tatin, inventada há 120 anos pela cozinheira do mesmo nome, que se enganou mas soube aproveitar o erro para fundar uma família de sobremesas que delicia pelo mundo fora. Afastamo-nos lentamente do museu de corredores infinitos que é a cozinha francesa e mesmo que superficialmente não podemos perceber senão que está antes e na base de todas as outras. E que antes de vir a carta com a licença para criar, é preciso ousar percorrer devagar todos os seus meandros. A cozinha francesa é imortal.

domingo, 13 de março de 2016

Inimigos naturais do vinho

São muito simples, mas são também dor de cabeça para os cozinheiros. Mesmo os mais experientes tropeçam neles, para conseguir contornar de forma eficaz a adversidade de os harmonizar com vinho. Mas quanto mais difícil é, mais apetece aceitar o repto. Coisas de humanos.

A glória de uma conversa de café resolve tudo, até os problemas mais complexos do mundo. Mas quando chega a hora de harmonizar pratos baseados com vinho, não podemos falhar. E contudo, há ingredientes que nunca se mostrarão simpáticos, terão sempre uma palavra a dizer e mais uma volta a dar. Elenco de seguida oito desses “impossíveis”, com a porta aberta para a experiência e o inteiramente novo.

Inimigo #1: Alcachofras
Desfolhar uma alcachofra cozida ao vapor e levar uma pétala de cada vez à boca depois de a passar por manteiga quente e limão dá-me tanto prazer que não consigo explicar. Assim como não lhe dar esse tratamento me parece Um total desperdício de uma coisa fantástica, iguaria de deuses. Fica banal e áspera no fim de boca, com uma sensação intensa de amargo que ecoa nas brumas de antes da idade do juízo. É capaz de ser por isso que tudo o que se come ou bebe a seguir parece mais doce do que na verdade é. O composto responsável por este efeito é a cinarina, um dos muitos adoçantes disponíveis na natureza, justamente por este efeito positivo-negativo que gera no palato. O vinho fica arruinado e feito bebida profundamente desinteressante, branco ou tinto, com ou sem madeira. Aliás, quanto mais alcoólico e tânico for o vinho, pior o resultado, à semelhança da imagem reflectida num espelho; os extremos tocam-se. A manteiga é gorda e salgada, o limão acrescenta acidez, é por isso que as coisas correm bem na minha forma preferida de comer uma alcachofra. Mas a planta permite preparações e cozinhados maravilhosos, e desde que se escolha bem o vinho, há casamento à vista. Um vinho branco velho - mais de 5 anos - consegue dar conta do recado e até brilhar, assim como um xerez - fino ou manzanilla -, especialmente em saladas.

Inimigo #2: Espargos
Enquanto as alcachofras tornam qualquer bom vinho numa bebida pouco interessante e adocicado, os espargos provocam uma alteração no sentido oposto, fica tudo mais “verde”, no sentido de vegetal e herbáceo, retirando quase tudo o que de confortável a agradável caracteriza o vinho. Isso deve-se à presença da metionina, um aminoácido rico em enxofre que cerra fileiras contra as coisas boas da mesa. O vinho tinto estagiado em madeira leva ordem imediata de expulsão, de forma mais gritante que no caso do marisco e um bom vinho branco tem a vida muito dificultada. Há a ter em conta a natureza amarga e herbácea dos próprios espargos, razão pela qual recorremos a um “dip”, um molho ou um creme onde passamos os espargos antes de os levar à boca. A maionese é a mais frequente e consegue criar pontes com o vinho. Não há como um Sauvignon Blanc para completar a ligação. A segunda pista para harmonização é fugir de perfis taninosos e madeira na hora de escolher o vinho. Riesling e arinto podem dar resultados interessantes.

Inimigo #3: Laranja
É talvez um abuso de linguagem dizer que a laranja é inimiga do vinho, mas grande amiga também não é. Está em causa uma capacidade de destruição do palato acima da média e requer assessoria paliativa cuidada. Estou a falar do fruto propriamente dito, e não da integração do seu sumo em molhos, temperos ou marinadas. Sempre me intrigou por que um uma peça de fruta de aceitação universal tinha na sua forma standard tal capacidade de desgraçar um vinho que me estava a dar prazer beber. A laranja e o vinho têm ambos ácido e doce na composição, com grande variabilidade nas ligações. Um vinho mais rico em polifenóis - caso do tinto - pode amargar, enquanto um licoroso pode de repente mostrar-se áspero e anguloso na boca. Quando ligada com chocolate, a laranja fica universal, e um vinagrete com ervas e laranja, a temperar um peixe grelhado pode fazê-lo ligar com um tinto ligeiro. Para não falar dos clássicos da cozinha, como pato com laranja, que ligam na perfeição com tintos sem madeira. Em salada, até ver, a única saída segura é o espumante, enquanto que bolos húmidos ou sobremesas com laranja casam bem com moscatéis novos ou colheitas tardias.

Inimigo #4: Nabo
A raiz de nabo é o que normalmente se inclui no cozido à portuguesa e, se divide as pessoas, os vinhos ainda mais. Constato que é ingrediente que a maioria dispensa no seu prato, mesmo aqueles mais afoitos nas coisas da tradição e do que se diz ser de sempre. Nabo é adstringente, amargo e nem no azeite pega. Entramos aqui na complexa zona da harmonização de vinhos com legumes, a um tempo complexa e recheada de excepções. Porque têm fibras, proteínas e açúcar, em porções variáveis. A raiz de nabo cozida é de muito difícil resolução, fica pouco espaço para mais do que um vinho branco simples e sem madeira. O mesmo não se pode dizer da variante salteada, que faz toda a diferença. Partir do nabo cru com um fundo de caldo na frigideira, juntar mostarda e mel de acácia, e no final pimenta preta transforma o legume em coisa vibrante, amiga por exemplo de Pinot Noir. Há que procurar e ajustar cozeduras e reduções até encontrar o ponto.

Inimigo #5: Beterraba
Tem açúcar e é amargo como a morte, o que é aparentemente paradoxal. Deve haver poucos alimentos com mais tonalidades terra do que a beterraba. Absolutamente impenetrável quando crua, pode tornar-se insuportável a partir de um certo ponto de cozedura. Pelo caminho, inúmeras tentativas goradas de harmonização com vinho. A riqueza de sabor e a intensidade no palato esmaga normalmente o vinho, aniquilando toda e qualquer complexidade ou interesse que pudesse ter. Para cúmulo, é um ingrediente estrela entre os criadores culinários da actualidade, parangona da sustentabilidade e riqueza nutritiva, pelo que tão cedo não vai desaparecer dos cozinhas. Para cúmulo também, têm saído bem as experiências com os vinhos de Colares, quanto mais velhos melhor. O Ramisco consegue entrar na massa de trufa preta e terra húmida da beterraba, criando uma plataforma equilibrada. Os Encruzados do Dão, talvez pelos granitos velhos onde normalmente existem, com as suas notas salgadas, mostram-se capazes de integrar e cortar a beterraba em diferentes pontos de cozedura.

Inimigo #6: Vinagre
Vinho e vinagre, basta atentar no acre do segundo para se perceber que se trata de coisa amarga, azeda, repelente. O preconceito fez e faz com que o vinagre não conseguisse alcançar o lugar devido à mesa e no entanto sem ele não havia escabeche; tempero; marinada; conserva; e tantas outras coisas. Fixo-me no escabeche, pelo quanto em tantos restaurantes veda o acesso ao bom vinho por não ser equilibrado. Vive aqui um mito que é preciso matar, um escabeche só é bom se for equilibrado. É que se um prato não for equilibrado, dificilmente a ponte com vinho terá sucesso. A utilização errada do vinagre balsâmico é outro factor a ter em conta, pelo conteúdo de sabor mais adocicado que apresenta.

Inimigo #7: Pepino
Estamos na presença de um legume notável, que sozinho representa saciedade e frescura. O que sempre se utilizou em Portugal tem sementes pronunciadas e uma casca dura que para efeitos de digeribilidade deve ser quase toda eliminada. O pepino que se utiliza no sushi é um outro, mais massudo e menos sumarento, além de praticamente não ter sementes. O nosso é um pandemónio para aceitar o vinho como companheiro estável, enquanto o “japonês” apresenta as coisas bastante mais facilitadas. Alvarinho, Loureiro e Fernão Pires conseguem entrar neste tipo de pepino, enquanto que o tradicional exige preparação, marinada ou molho. Impossível não recordar a salada tépida de pepino e crème fraiche que se servia no ido Amadeus, em Almancil. A maceração e cozedura muito lenta torna-o universal, até um tinto ligeiro entra bem. A ligação mais forte é um branco com madeira.


Inimigo #8: Gema crua
O ovo de galinha tem albumina na clara, rica em antioxidantes, e gema, muito rica em ferro. O negócio com o vinho passa sobretudo pela gema, pelo quanto destrói a estrutura de um vinho quando está mais encruada que cozida. Um espumante ou um kirsch royal podem conseguir entrar, graças à efervescência da bebida bem como sua à acidez fixa elevada. Falo por exemplo dos célebres “ovos benedict”, mas aplica-se também ao pudim de ovos, ricos em gemas, como se sabe, com a diferença da presença de açúcar em ponto estrada ou espadana, além da produção de caramelo. Abre caminho para o vinho Madeira, mas não todo, ou para o moscatel de Setúbal. Doçaria conventual e caseira pedem que se pense nelas mas não facilitam muito o caminho. Há que persistir.

Só custa começar, o segredo é ir anotando as experiências e seguir caminho, com novas tentativas. Quanto mais conseguirmos sistematizar, mas flexibilidade ganhamos, aplicando o conhecimento adquirido noutras abordagens. Boas provas!

(Revista de Vinhos Mar'16)

Um ano inteiro com ordem para brilhar

Agora que 2015 está arquivado, é altura de planear 2016 e marcar os eventos, restaurantes, provas e lugares que não queremos perder. Mais do que espectáculos com lugar e data, que sejam manifestos vivos e duráveis.

Em vez do vezeiro e soturno recordar dos bons momentos do ano que passou, permito-me trazer aqui o que eu gostava de ver de novo acontecer em 2016, e como. Afinal, foi um ano cheio de novidade e bravura, em contraciclo com uma espécie de esmorecimento instalado em relação ao futuro e ao que é preciso fazer. O universo enogastronómico em Portugal está finalmente a mover-se com a sua própria energia. Há motivos para acreditar que 2015 não foi mais um ano de olhar para os outros e descansar na sombra; as andou-se e muito. Claro que não falo de megamovimentos de âmbito nacional nem mobilizações de maciços de gente, até porque não existem no nosso país os militantes da comida e do vinho suficientes para encher o Pavilhão Atlântico. Os show cookings - leia-se demonstrações culinárias - congregam assistências variadas, mas entre 30 e 50 é uma boa estimativa das pessoas que vão propositadamente para ver os chefs ao vivo. Não é brilhante a afluência, são mais as vozes que as nozes e além disso, há muito tempo que não vejo cozinheiros nas bancadas, com muita pena, porque o elevado nível das apresentações merecem, não só casa cheia, mas também a presença dos pares. Lá fora vejo auditórios pejados de jalecas de cozinheiro, cá nem à paisana encontro mais de meia dúzia. Virá o tempo, quem sabe. Aproveito a deixa para fazer a primeira referência dentre as quatro que quero deixar lavradas com a estrela da expectativa. Trata-de do Ocean Fine Wines & Food Fair e acontece no Vila Vita Parc, em Alporchinhos, Algarve. Chefes de grande gabarito, portugueses e estrangeiros, num desfile ritmado dia após dia, no restaurante Ocean, detentor de duas estrelas Michelin, numa sequência coroada por uma grande noite, a Kitchen Party, um verdadeiro espectáculo com vários palcos, em que cada chef tinha o seu próprio show cooking em acção, num exercício notável de proximidade com as pessoas, trocando impressões, explicando e até fazendo algumas variações. Nos vinhos, igual desempenho, com a presença dos produtores, assim como fabricantes e distribuidores de produtos gourmet de elevado nível. Organização irrepreensível, a marcar novo standard para eventos do género, fasquia bem alta. Quero ver o evento repetido Deixo falar o coração e digo sem hesitar que o Tribute to Claudia, no Vila Joya (Galé), foi o evento do ano 2015. Joy Jung, filha de Claudia - já falecida - e Klaus Jung, criadores e força anímica ainda hoje do projecto, teve o rasgo genial de voltar aos fundamentos da casa, tal como preconizados e vividos principalmente por sua mãe. Só os mais atentos se aperceberam de que o que é talvez o maior festival de gastronomia da Europa deixou as luzes da ribalta para ser coração, memória e família. O Senhor João, que recebia efusivamente toda a gente com o seu “welcome to paradise” de braços abertos, foi convocado, mesmo tendo-se já reformado. E tantos outros, naquelas noites mágicas, que vieram de novo a esta casa, marco biográfico de todos. Os chefs mais influentes da vida de Dieter Koschina, chef do Vila Joya. Os seus amigos portugueses. Os chefs com estrelas Michelin em Portugal, num jantar revelador da excelente forma da criação culinária nacional. As maiores expectativas para este ano, portanto. Um terceiro movimento, Taste Portugal London, teve origem no Conrad Algarve, com efeitos mobilizadores inéditos dos valores nacionais da cozinha e do vinho, literalmente em campanha internacional, expondo um lado tão positivo quanto desconhecido de Portugal. Penso que o modelo está para durar, já que as possibilidades de configurações de vinhos, comida e profissionais são praticamente inesgotáveis. Gosto da noção de equidistância entre vinho e comida, e ao mesmo tempo, do lugar de proa dado às harmonizações. Forma inteligente de dar a conhecer o nosso extenso património gastronómico, ao mesmo tempo que cria oportunidades reais de negócio. Vinga o sabor português, ganha terreno o postulado de Portugal na vanguarda internacional. Raízes e proximidade exprimem a assinatura das nossas cozinhas e famílias. Estou atento aos movimentos deste ano, nestas iniciativas nacionais lá fora. O quarto evento de que lanço mentalmente a edição deste ano - esperando que a ousadia permaneça - aconteceu no Epic Sana Algarve. Luís Mourão, oficiante naquela bonita e sofisticada casa, que conhecia do tempo do Convento do Espinheiro, em Évora, e agora está à frente do bastião algarvio do grupo Sana, anunciou, fez e prometeu nova edição, o que chamou jantar sensorial. Harmonizações vínicas a cargo do escanção Marco Alexandre. Foi um desfile de sentidos, nuns pratos inibindo alguns, noutros explorando principalmente um, noutros ainda provocando o pleno. Surpreendeu-me a ousadia do chef Mourão, ao mesmo tempo que me alegrou sabê-lo capaz do fantástico. Impressionou-me o conjunto de harmonizações de enorme risco que Marco alinhou para experiência de mais de três horas à mesa, este talvez o maior dos riscos. E registei a felicidade que registo sempre que vejo assumidos o produto e o gosto portugueses na forma maior. Baixa-mar, preia-mar, as rochas, a horta, sensações, a antítese, o campo, a surpresa, nomes dos pratos principais servidos. Há influências que detectamos, de chefs de renome, estrelados, inspiradas em pratos que quem viaja até pode já ter provado. Ali não havia complexos desses, o objectivo era a experiência. Foi emocionante, teve momentos de plena felicidade e revelou um trabalho gigante de equipa, toda ou quase toda nacional. Na latitude em que nos encontramos, é uma excepção e só com sentido grave de missão o chef Mourão conseguiu reunir tal colectivo para trabalhar consigo. Vontade correspondida e acolhida pela mais dinâmica das cadeias de hotéis a operar no país, com clara aposta na cozinha e gastronomia. Desejo, como é evidente, que outras unidades sigam o exemplo e façam pelo menos uma vez por ano este exercício transcendente. Colocar a si próprias o desafio que põe tudo à provar.
Abre-se um ano de grandes expectativas, com o campo das boas concretizações totalmente aberto e lavrado. Quero que seja o ano da afirmação definitiva do talento português. Merecemos, queremos, precisamos Que seja também o ano dos imperdoáveis da ousadia. Ousar!

(Revista de Vinhos Mar'16)

Vinhos de Lisboa: muito por onde explorar

Lisboa, Alenquer, Arruda, Bucelas, Carcavelos, Colares, Encostas d’Aire, Lourinhã, Óbidos e Torres Vedras são o novo reticulado da região de Lisboa. Grande exposição atlântica, efervescente de novos projectos e experiências. Pedi a nove produtores que apontassem o vinho que na sua perspectiva melhor os representa, em termos de identidade, e aqui está o resultado. Por isso mesmo, não apresento a nossa classificação. Nota máxima para todos. Boas provas!

Dory regional Lisboa branco 2014 | AdegaMãe - 4,5 Eur
É o mais jovem projecto do elenco aqui alinhado. Acidez, mineralidade, e ligeiro toque salino, influência atlântica acentuada. Fernão Pires, Arinto, Viosinho e Viognier, o paradigma do encontro de castas de outras regiões tão bem define Lisboa. Belo vinho.

Quinta do Gradil Sauvignon Blanc/Arinto regional Lisboa branco 2014 | Quinta do Gradil - 6 Eur
O grupo Parras abrange hoje várias denominações de origem, mas foi aqui, na de Lisboa, que tudo começou. A estratégia de produzir brancos de qualidade superior conduziu a este vinho, universal em termos de público-alvo. Frescura é o ponto forte.

Quinta do Monte d’Oiro Reserva 2013 regional Lisboa | José Bento dos Santos - 30 Eur
Tem uma trajectória extraordinária esta marca, verdadeira assinatura portuguesa da casta Syrah e um dos seus melhores exemplos na escala internacional. Quem tem possibilidade de alinhar anos diferentes numa mesma prova percebe o terroir e a enologia cuidada que lhe está na base.

Francos Reserva regional Lisboa tinto 2011 | DFJ Vinhos - 35 Eur
Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet, uvas provenientes da Quinta de Porto Franco, num vinho que já tem lugar nos clássicos e um significado muito especial na história do produtor. Beneficia com guarda em garrafeira, para abrir num dia feliz.

Chocapalha Vinha Mãe regional Lisboa tinto 2011 | Soc. Agrícola das Mimosas - 20 Eur
Vinho produzido a partir de uma única parcela das vinhas mais velhas da propriedade. Touriga Nacional (maioria), Syrah e Tinta Roriz, é um dos emblemas da casa, vai constar seguramente da galeria de notáveis da região e resistir ao teste do tempo, pelo equilíbrio que tem.

Quinta de Sant’Ana Homenagem a Baron Gustav von Furstenberg regional Lisboa tinto 2010 - 23 Eur
É uma das quintas mais dinâmicas da região e ao mesmo tempo referência em termos de inovação em viticultura e enologia. Este vinho celebra a família e o que é singular. Enologia cuidada, vinho fresco e com capacidade de guarda.

Vale da Capucha DOC Torres Vedras branco 2013 | Vale da Capucha - 11 Eur
O produtor anuncia no rótulo o que é determinante no vinho. Há milhões de anos, esteve o mar onde hoje está a vinha, no vale da serra da Capucha. Este projecto notável visa entre outras recuperar a glória dos brancos de Torres Vedras, minerais e plenos de notas salgadas.

Quinta das Cerejeiras Reserva DOC Óbidos tinto 2011 | Comp. Agrícola do Sanguinhal - 14 Eur
Está aqui um dos vinhos mais versáteis em termos de consumo à mesa, particularmente capaz de acompanhar pratos especiados e picantes, como é o caso de muitas cozinhas étnicas. Na garrafeira desenvolve complexidade e é eterno na longevidade.

Quinta das Carrafouchas regional Lisboa tinto 2010 | Maria Veneranda C. Cannas - 10 Eur
Frescura, equilíbrio e capacidade de guarda. A casa mantém-se fiel a si própria, com vinhos ligeiramente contra a corrente, e um registo de expressão de terroir que tem sabido manter ao longo dos anos. Pede guarda por muitos e bons anos, apesar de estar pronto a consumir.

Lisboa, capital também de vinho

Toca no mar, nas areias mais caprichosas, afunda-se nas argilas dos solos mais interiores, empresta sal nos seus calcários, seixos rolados e fósseis e adora a novidade, recebendo de braços abertos a diversidade de castas do mundo inteiro. Os vinhos de Lisboa estão a marcar pontos.

Tem muitos projectos ainda em consolidação esta região vitivinícola que ainda busca uma identidade própria, já que ainda há pouco existia fragmentada e com os braços dispersos pelas imagens individuais de cada produtor. Não se pode dizer que seja forte em turismo, mas conseguiu. num curto espaço de tempo, criar vinhos de grande nível, conquistando consumidores, concursos e lugares nas garrafeiras dos enófilos mais exigentes. O trabalho que se desenvolveu, em termos gerais, procura integrar castas nacionais e estrangeiras, no que se tem mostrado exímia. Castas nacionais, provenientes de outras regiões, também aqui têm encontrado berço caloroso, com grande acolhimento pelo mercado. Madrid também tem a sua região, mas a de Lisboa tem sabido ir mais longe, sabiamente coordenada por Vasco Avillez, entusiasta nato e óptimo facilitador de contacto entre produtores, que é afinal aquilo de que uma boa região produtora de vinhos é feita. Detemo-nos nos produtores que têm já operações tanto de produção como de turismo consolidadas, e quando percebemos que temos de fazer uma selecção percebemos o muito que há ainda por desbravar e desenvolver. Estaremos atentos e iremos dando conta das muitas glórias que haverá para relatar. Para já, um primeiro périplo.
A Adega Mãe nasce da vontade indomável dos bravos que deram corpo à marca Riberalves, umas das mais respeitáveis e excelentes do fabuloso universo do bacalhau. Conseguiu impor um novo léxico e formas de preparação para o consumo do fiel amigo, a partir de produto da melhor qualidade, tratado acima das normas e recomendações mais estritas. Nas instalações da Torres Vedras, vive-se um pouco a recíproca, o vinho é rei e a tónica da inovação é lei, com o brilhante enólogo Diogo Lopes a liderar a enologia, e o super-especialista Anselmo Mendes a supervisionar tudo e a zelar pela manutenção da qualidade e personalidade das marcas. A complexidade e a elegância são atributos recorrentes de todos os vinhos do portfólio AdegaMãe, o que abre todas as portas para experiências de harmonização bem sucedidas. A marca Dory marca a entrada de gama, seguindo-se depois os varietais, diversos, que se pode provar e comprar.
Chegamos à Quinta do Gradil e damos com um mundo organizado e arrumado. Já vai a caminho de completar 20 anos este projecto de contornos únicos, que soube crescer de forma sustentada. Hoje pertence ao grupo Parras, entretanto criado por Luís Vieira para abranger os investimentos feitos no sector vitivinícola, que já abrangem seis regiões diferentes. Há uma orientação da oferta para as necessidades do mercado nacional, ávido de novidades e abordagens diferentes a castas e suas combinações, mas nasceu há relativamente pouco tempo uma nova ordem, orientada para os tipos de uva que produzem os melhores vinhos. São os monovarietais, que têm tido boa aceitação nas praças internacionais e estão disponíveis para prova neste espaço. Imperdível ainda a aguardente velha, legado familiar do proprietário.
A Quinta do Monte d’Oiro, de vinhos bem conhecidos, merece visita demorada. Tem a casta Syrah incrustada no código genético, bem como a gastronomia e a cozinha. José Bento dos Santos é um dos grandes motores da cena gastronómica portuguesa, e talvez o que mais influência teve no impulsionamento e descoberta dos novos valores nacionais. Aqui vive-se isso de forma bem visível, assente numa produção de vinhos de alto gabarito, disponíveis para prova e venda directa na propriedade. O acolhimento a quem passa é caloroso e marcando, é possível fazer uma prova a gosto. Muito por onde escolher, a oferta vai bem para lá do casta principal dos vinhos do vale do Ródano. Uvas de castas nacionais plantadas nos locais seleccionados, enologia de Graça Gonçalves e o timing certo para engarrafar, tornam qualquer vinho Monte d’Oiro objecto de colecção.
A região de Lisboa alberga tanto a micropropriedade quanto o grande produtor. Implantada na fronteira com a região do Ribatejo, a DFJ é uma das empresas do sector vitivinícola que mais exporta e propaga a marca Portugal. Tem dezenas de marcas no mercado, que ano após ano produz pelo país fora. José Neiva Correia, proprietário, insiste em responder pela profissão de enólogo, que de resto exerce há mais de 40 anos. Os três topos de gama que a DFJ produz são o Consensus, no Tejo; Escada, no Douro; e Francos, em Lisboa. Este último é emblemático, por porvir da Quinta de Porto Franco, em Alenquer, onde o enólogo e empresário nasceu. Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet entram na composição deste clássico. Uma ida à Fonte Bela é tomar contacto com a excelência e e exclusividade de um grupo que apesar da dimensão grande mantém um registo familiar e de coração.
Há espaço para a inovação e vanguarda, através de toda a região de Lisboa. Foi uma sequência feliz de acasos que fez com que a família Tavares da Silva se fosse instalar perto da Merceana, para começar e consolidar um dos mais singelos projectos vitivinícolas da região de Lisboa. Conhecemos Sandra Tavares da Silva da linha da frente da nova enologia portuguesa, a formação que procurou não visava estritamente dar continuidade ao legado familiar - o seu pai, Paulo Tavares da Silva, teve importante intervenção no desenvolvimento da vitivinicultura da Estremadura - mas acabou por resultar num demonstrador do potencial de uma região que escondia ainda muitos dos seus trunfos. O resultado foi a mobilização de toda a família e a montagem de uma operação de produção de vinho e enoturismo a que é sempre um prazer regressar.
Fica no centro de Gradil a bonita Quinta de Sant’Ana, os vinhedos estendem-se pelos terrenos acidentados adjacentes. Enologia de António Maçanita e uma visão interessante sobre castas estrangeiras, nacionais e os melhores locais para as plantar, sem preconceito nem ideias fixas; tudo feito com grande pragmatismo. Os Frost são uma família numerosa e todos, sem excepção têm um papel importante a desempenhar. James, mulher e filhos já são património da região. Se há dia bem passado, é aqui que acontece. Inesquecível.
Aproximamo-nos das estradas movimentadas já bem perto de Lisboa, o bulício aumenta, e a vida de campo parece quimérica. Pedro Marques, do Vale da Capucha, olhou para Torres Vedras e suas glórias passadas e deve ter tido dificuldade em entender por que se tinha praticamente perdido um património tão importante. Mobilizou a família para a produção de vinhos de grande gabarito em solos únicos, de forte mineralidade, e concretizou, com uma gama interessante e diversificada. Frescura impressionante em todos os vinhos, opção pela elegância e capacidade gastronómica. Obrigatório comprar para ter na garrafeira.
A Quinta das Cerejeiras (Quinta do Sanguinhal) é um clássico desde há muito e não é possível entender o vinho de Lisboa sem a visitar. Património industrial de grande porte, incluindo alambiques outrora e actividade intensa, a história é indissociável do tempo dos armazenistas de Lisboa, em particular a Abel Pereira da Fonseca, família hoje representada por Carlos João Pereira da Fonseca, exímio contador de histórias e grande apaixonado pelo seu ofício. Os vinhos são diversificados, alguns a mostrar duos de castas portuguesas e estrangeiras com particular êxito.
A Quinta das Carrafouchas possui provavelmente a vinha mais próxima de Lisboa, fica junto a Loures e está na família há várias gerações. António Maria Cannas é a face mais visível de tudo o que aqui acontece e é muito. A operação de enoturismo tem merecido investimentos importantes, criando um pólo inevitável de atracção de visitantes à região. Hugo Mendes é o enólogo que com António Maria, tem feito propostas a um tempo vanguardistas e minimalistas, sempre em busca de produzir vinhos praticamente não manipulados. É preciso marcar com antecedência, e há soluções para grupos que vão ficar na memória.

(Evasões 16.03.11)

domingo, 6 de março de 2016

Haig Club, um whisky descomplicado e democrático

Custa 40 Eur (700ml) e é o estreante whisky “single grain”, orientado para os consumidores não-clássicos do destilado escocês, com a marca de David Beckham. Ao contrário dos seus sofisticados congéneres topo de gama, o Haig Club é produzido a partir de grãos de cereais não maltados - processo mais directo - e destilado em coluna, em vez de alambiques clássicos. O que não quer dizer que não tem raízes profundas no tempo, já que a destilaria de Cameronbridge, onde é produzido, tem mais de 400 anos de laboração contínua. Impressionante. O whisky em si, para quem como eu gosta de ter prazer com a complexidade e sofisticação, é ligeiramente decepcionante, por se assemelhar muito a um bourbon novo, mas por outro lado permite saídas semelhantes às de um gin, em termos de preparação. Tanto é que a própria marca aconselha, como perfect serve, 50ml Haig Club, 200ml Ginger Ale, e um twist de laranja.
Algumas curiosidades: 1) Garrafa azul-escuro, evocativa dos copos utilizados para produzir os blends, em que apenas aroma e sabor devem ser contabilizados; 2) Tampa cor de cobre, material de que são feitas as colunas de destilação; 3) Foi em Cameronbridge que se desenvolveu a técnica de produção de whisky em coluna.
Portanto, finalmente um whisky em que o cubo de gelo, e tudo o que se quiser acrescentar faz parte do jogo, deixa de ser um “crime” (que entretanto toda a gente praticava…). Provei e gostei. Vou continuar.