quinta-feira, 17 de março de 2016

A cozinha francesa, a grande plataforma.

Se eventualmente desaparecer, terá deixado a sua marca em todo o mundo e em todas as cozinhas dos diversos países, com as suas técnicas, receitas, e produtos. França é ainda e será por muitos e bons anos, sinónimo de cozinha.

Olhar para a cozinha francesa e descrevê-la em poucas palavras é como resumir os corredores e alas de um grande museu sem falhar os quadros principais. Num caso e noutro, o detalhe é tudo. Não há percursos vol d’oiseau que lhes façam justiça, mas vale abdicar do todo e fixar-nos em pequenas partes. A sopa de cebola é para mim obrigatória e fundadora, sempre que abordo o assunto da cozinha francesa. Historicamente, perde-se nas brumas do tempo, se nalgum momento o gigantesco carro alegórico que é o receituário francês foi prancha simples com rodas rústicas, foi nesse, desconhecido, dos caldos com pão, base mediterrânea por excelência. Coisa romana, se quisermos, com Apício, no início da era cristã, ou grega se abrirmos bem os olhos, com Arquéstrato, no início do séc. IV a.C. Sopa quer realmente dizer caldo com pão e é justamente nos caldos que está a grande origem da cozinha francesa. O “fond de veau”, ou caldo de vitela, é na escala de Brillat-Savarin, na sua obra-âncora “A fisiologia do gosto”, o preparado culinário que mais “osmezoma” apresenta, dentre todos. Definiu-a como o “quinto sabor”, ou o sabor do que sabe bem, e disse que “ainda se ia falar muito dele”. Notável como ao darmos com o “umami” da cozinha japonesa encontramos um trabalho idêntico, tanto de busca de perfeição como de culto do sabor e da sofisticação. No caso oriental, o caldo dashi, feito com camarão seco e algas, é o que contém mais umami, cerca do dobro do caldo de vitela. Acima dele, está o extremo da escala que é imagine-se, o leite materno. Dez vezes o caldo de vitela, vinte o dashi. A sopa de cebola é a fervura do legume em caldo de carne, que se produz depois de se reservar o primeiro caldo. Exagero no detalhe, é imperativo fazê-lo, estamos na ala principal do grande museu. Junta-se à sopa de cebola pedaços de pão torrado e queijo e tem-se o grande clássico da cozinha francesa. Os caldos e os molhos, fundamentais na organização enciclopédica gaulesa, são coisa para levar a sério. O vinho é para levar ainda mais a sério em França, e talvez só ali seja absolutamente indispensável para a leitura correcta da cozinha. Começa nas marinadas, passa pelas muitas receitas que contemplam o vinho com o ingrediente nobre - deixem-me confessar o “parti pris” pela fabulosa galinha de Bresse com morilles em vin jaune do Jura - e termina com a quase obsessiva harmonização perfeita de cada especialidade com um vinho. Esta última é uma actividade que cada francês chama a si e que encosta ao peito com devoção. E defende os seus queijos com a vida. 45 denominações de origem controlada e 38 indicações geográficas protegidas num total de mais de mil queijos diferentes registados actualmente em produção, dá para perceber a sua relevância à mesa. Uma sondagem feita há cerca de 10 anos revelou que cerca de 5% de dos consumidores acham que podem alimentar-se apenas de queijo. Na verdade, além do prazer está a conserva, aquilo que se faz para comer mais tarde. Exactamente como o foie gras, o fígado gordo de ganso ou pato que sujeito à transformação ligeira “mi-cuit” - sensivelmente meia hora a 80 graus - se conserva por cerca de 2 anos sem perder características nutritivas. Para nós é luxo, no sudoeste francês é produto de subsistência, iguaria camponesa. Estamos na zona dos “confit”, que por cá dizemos confitado e que quer dizer conserva, originalmente nas artes doceiras, porque era os açúcares dos frutos que se confitava, produzindo conservas - confits - para guardar. Nota importante para quem acha que a cozinha francesa desperdiça e esbanja muito, porque não pode haver ideia mais errada. As duas últimas décadas assistiram a uma das maiores revoluções na história da alimentação, com a fixação de territórios óptimos para produção de… legumes! Alain Passard tem três estrelas Michelin no seu restaurante parisiense Arpège - tenho de o citar porque continua a ser a minha melhor refeição até hoje e já foi em 2002 -, onde mostra parte da sua arte e fala de bizarrias como os eixos irregulares da raiz do nabo. Não entende França quem não se interessa pela alta cozinha, que hoje se declina assim, no detalhe e vida de um ingrediente simples. Espírito de banquete, obsessão de relojoeiro. Por outro lado, a cozinha francesa exige por vezes cozeduras de horas a fio, quando não de mais de um dia. Dois bons exemplos disso são as coxas de pato confitadas na sua própria gordura - é normal durar 36 horas - e o célebre “boeuf bourguignon”, estufado lento de carne de vaca em vinho tinto. Duas maravilhas alquímicas de flexibilidade ilimitada. Dois grandes amigos do vinho, além disso. Mas não se pense que a cozinha tradicional francesa é toda ela demorada e longa. Sofisticação não se compra com tempo, mas sim com “savoir-faire”. Inefável o magret de pato, que nunca pode sair do registo de muito mal passado e aceita mel, frutos vermelhos, laranja, marmelos como assessores. Brilhante um serviço de ostras ao natural, peixes ao vapor, e as saladas de tudo com quase tudo. As flores, a festa das ervas - fines-herbes -, as essências, as trufas e as batatas. As vieiras da Normandia, a flor de sal da Camarga e o eixo invisível mas que se sente e atravessa toda a França, e vai das natas, ao azeite, passando pela fabulosa diversidade de manteigas, incluindo a categoria “demi sel”, ou meio-sal, que tanta falta nos faz por cá. As tartes - quiches - de praticamente tudo marcam presença no nosso próprio quotidiano, como se tivessem cá nascido, variando na riqueza, complexidade e custo, mas alimentam bem por pouco dinheiro; outro desígnio da cozinha francesa, corolário dos muitos aproveitamentos que contempla. Gigante é também a doçaria, todo um edifício colossal, verdadeiro monumento que fixou receitas tão simples quanto a tarte Tatin, inventada há 120 anos pela cozinheira do mesmo nome, que se enganou mas soube aproveitar o erro para fundar uma família de sobremesas que delicia pelo mundo fora. Afastamo-nos lentamente do museu de corredores infinitos que é a cozinha francesa e mesmo que superficialmente não podemos perceber senão que está antes e na base de todas as outras. E que antes de vir a carta com a licença para criar, é preciso ousar percorrer devagar todos os seus meandros. A cozinha francesa é imortal.

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