domingo, 13 de março de 2016

Lisboa, capital também de vinho

Toca no mar, nas areias mais caprichosas, afunda-se nas argilas dos solos mais interiores, empresta sal nos seus calcários, seixos rolados e fósseis e adora a novidade, recebendo de braços abertos a diversidade de castas do mundo inteiro. Os vinhos de Lisboa estão a marcar pontos.

Tem muitos projectos ainda em consolidação esta região vitivinícola que ainda busca uma identidade própria, já que ainda há pouco existia fragmentada e com os braços dispersos pelas imagens individuais de cada produtor. Não se pode dizer que seja forte em turismo, mas conseguiu. num curto espaço de tempo, criar vinhos de grande nível, conquistando consumidores, concursos e lugares nas garrafeiras dos enófilos mais exigentes. O trabalho que se desenvolveu, em termos gerais, procura integrar castas nacionais e estrangeiras, no que se tem mostrado exímia. Castas nacionais, provenientes de outras regiões, também aqui têm encontrado berço caloroso, com grande acolhimento pelo mercado. Madrid também tem a sua região, mas a de Lisboa tem sabido ir mais longe, sabiamente coordenada por Vasco Avillez, entusiasta nato e óptimo facilitador de contacto entre produtores, que é afinal aquilo de que uma boa região produtora de vinhos é feita. Detemo-nos nos produtores que têm já operações tanto de produção como de turismo consolidadas, e quando percebemos que temos de fazer uma selecção percebemos o muito que há ainda por desbravar e desenvolver. Estaremos atentos e iremos dando conta das muitas glórias que haverá para relatar. Para já, um primeiro périplo.
A Adega Mãe nasce da vontade indomável dos bravos que deram corpo à marca Riberalves, umas das mais respeitáveis e excelentes do fabuloso universo do bacalhau. Conseguiu impor um novo léxico e formas de preparação para o consumo do fiel amigo, a partir de produto da melhor qualidade, tratado acima das normas e recomendações mais estritas. Nas instalações da Torres Vedras, vive-se um pouco a recíproca, o vinho é rei e a tónica da inovação é lei, com o brilhante enólogo Diogo Lopes a liderar a enologia, e o super-especialista Anselmo Mendes a supervisionar tudo e a zelar pela manutenção da qualidade e personalidade das marcas. A complexidade e a elegância são atributos recorrentes de todos os vinhos do portfólio AdegaMãe, o que abre todas as portas para experiências de harmonização bem sucedidas. A marca Dory marca a entrada de gama, seguindo-se depois os varietais, diversos, que se pode provar e comprar.
Chegamos à Quinta do Gradil e damos com um mundo organizado e arrumado. Já vai a caminho de completar 20 anos este projecto de contornos únicos, que soube crescer de forma sustentada. Hoje pertence ao grupo Parras, entretanto criado por Luís Vieira para abranger os investimentos feitos no sector vitivinícola, que já abrangem seis regiões diferentes. Há uma orientação da oferta para as necessidades do mercado nacional, ávido de novidades e abordagens diferentes a castas e suas combinações, mas nasceu há relativamente pouco tempo uma nova ordem, orientada para os tipos de uva que produzem os melhores vinhos. São os monovarietais, que têm tido boa aceitação nas praças internacionais e estão disponíveis para prova neste espaço. Imperdível ainda a aguardente velha, legado familiar do proprietário.
A Quinta do Monte d’Oiro, de vinhos bem conhecidos, merece visita demorada. Tem a casta Syrah incrustada no código genético, bem como a gastronomia e a cozinha. José Bento dos Santos é um dos grandes motores da cena gastronómica portuguesa, e talvez o que mais influência teve no impulsionamento e descoberta dos novos valores nacionais. Aqui vive-se isso de forma bem visível, assente numa produção de vinhos de alto gabarito, disponíveis para prova e venda directa na propriedade. O acolhimento a quem passa é caloroso e marcando, é possível fazer uma prova a gosto. Muito por onde escolher, a oferta vai bem para lá do casta principal dos vinhos do vale do Ródano. Uvas de castas nacionais plantadas nos locais seleccionados, enologia de Graça Gonçalves e o timing certo para engarrafar, tornam qualquer vinho Monte d’Oiro objecto de colecção.
A região de Lisboa alberga tanto a micropropriedade quanto o grande produtor. Implantada na fronteira com a região do Ribatejo, a DFJ é uma das empresas do sector vitivinícola que mais exporta e propaga a marca Portugal. Tem dezenas de marcas no mercado, que ano após ano produz pelo país fora. José Neiva Correia, proprietário, insiste em responder pela profissão de enólogo, que de resto exerce há mais de 40 anos. Os três topos de gama que a DFJ produz são o Consensus, no Tejo; Escada, no Douro; e Francos, em Lisboa. Este último é emblemático, por porvir da Quinta de Porto Franco, em Alenquer, onde o enólogo e empresário nasceu. Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet entram na composição deste clássico. Uma ida à Fonte Bela é tomar contacto com a excelência e e exclusividade de um grupo que apesar da dimensão grande mantém um registo familiar e de coração.
Há espaço para a inovação e vanguarda, através de toda a região de Lisboa. Foi uma sequência feliz de acasos que fez com que a família Tavares da Silva se fosse instalar perto da Merceana, para começar e consolidar um dos mais singelos projectos vitivinícolas da região de Lisboa. Conhecemos Sandra Tavares da Silva da linha da frente da nova enologia portuguesa, a formação que procurou não visava estritamente dar continuidade ao legado familiar - o seu pai, Paulo Tavares da Silva, teve importante intervenção no desenvolvimento da vitivinicultura da Estremadura - mas acabou por resultar num demonstrador do potencial de uma região que escondia ainda muitos dos seus trunfos. O resultado foi a mobilização de toda a família e a montagem de uma operação de produção de vinho e enoturismo a que é sempre um prazer regressar.
Fica no centro de Gradil a bonita Quinta de Sant’Ana, os vinhedos estendem-se pelos terrenos acidentados adjacentes. Enologia de António Maçanita e uma visão interessante sobre castas estrangeiras, nacionais e os melhores locais para as plantar, sem preconceito nem ideias fixas; tudo feito com grande pragmatismo. Os Frost são uma família numerosa e todos, sem excepção têm um papel importante a desempenhar. James, mulher e filhos já são património da região. Se há dia bem passado, é aqui que acontece. Inesquecível.
Aproximamo-nos das estradas movimentadas já bem perto de Lisboa, o bulício aumenta, e a vida de campo parece quimérica. Pedro Marques, do Vale da Capucha, olhou para Torres Vedras e suas glórias passadas e deve ter tido dificuldade em entender por que se tinha praticamente perdido um património tão importante. Mobilizou a família para a produção de vinhos de grande gabarito em solos únicos, de forte mineralidade, e concretizou, com uma gama interessante e diversificada. Frescura impressionante em todos os vinhos, opção pela elegância e capacidade gastronómica. Obrigatório comprar para ter na garrafeira.
A Quinta das Cerejeiras (Quinta do Sanguinhal) é um clássico desde há muito e não é possível entender o vinho de Lisboa sem a visitar. Património industrial de grande porte, incluindo alambiques outrora e actividade intensa, a história é indissociável do tempo dos armazenistas de Lisboa, em particular a Abel Pereira da Fonseca, família hoje representada por Carlos João Pereira da Fonseca, exímio contador de histórias e grande apaixonado pelo seu ofício. Os vinhos são diversificados, alguns a mostrar duos de castas portuguesas e estrangeiras com particular êxito.
A Quinta das Carrafouchas possui provavelmente a vinha mais próxima de Lisboa, fica junto a Loures e está na família há várias gerações. António Maria Cannas é a face mais visível de tudo o que aqui acontece e é muito. A operação de enoturismo tem merecido investimentos importantes, criando um pólo inevitável de atracção de visitantes à região. Hugo Mendes é o enólogo que com António Maria, tem feito propostas a um tempo vanguardistas e minimalistas, sempre em busca de produzir vinhos praticamente não manipulados. É preciso marcar com antecedência, e há soluções para grupos que vão ficar na memória.

(Evasões 16.03.11)

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