domingo, 11 de fevereiro de 2018

Até já, Açucena

Deixou-nos a sereia mais querida de todos os mares. Açucena Veloso partiu como os grandes, morreu já na condição de imortal, de tanto que fez por nós todos, pelos cozinheiros, e pelo imenso mundo marítimo. Tudo o que de bom se possa dizer sobre a pequenina peixeira Açucena será sempre pouco, será sempre gigante.

As filhas vão seguramente continuar o trabalho notável da mãe, de resto já estavam ao seu lado há vários anos, mas nada vai ser igual. Se é verdade que só há bons restaurantes quando têm bons fornecedores e parceiros, nos que se especializaram em peixe e marisco a dependência é visceral. A Lisboa, toalha à beira mar estendida, já diz o fado, tem a sua excelsa reputação graças a gerações de pescadores e negociantes que de olhos nos olhos foi entregando às grelhas e brasas da capital o melhor do que foi passando. A virtude das praças de peixe esteve sempre nas mãos das peixeiras e peixeiros que nelas oficiaram, e Açucena estava sempre como peixe na água. Quando deu os primeiros passos não teria mais de dez anos e cedo se afeiçoou às tarefas curriculares mais diversas, desde apregoar até entregar, com o tempo cresceu a complexidade e com ela o amanhar e preparar peixe para fins específicos. As bitolas grandes nunca a intimidaram e os gigantes mero, atum e cherne tinham a mesma pompa que o mais simples cachucho, faneca ou xaputa. E era da cozinha japonesa, em que ainda vivemos, foi abraçada com o fervor e entusiasmo de sempre, a preocupação principal era a de corresponder ao que os chefs e mestres pretendiam. Sempre pronta para atender os colegas de profissão nas suas dúvidas e necessidades, Açucena transcendia-se e desdobrava-se em cuidados quando surgia alguma urgência. Impossível era palavra que não existia no seu léxico, demonstrou-o vastamente em muitas frentes. Esteve desde a primeira edição do Peixe em Lisboa, há mais de dez anos com uma presença copiosa de pescado e venda directa do melhor que o mar tinha trazido, em banca sempre engalanada e colorida com os matizes da frescura e da fundura. Fascínio pelo inteiramente novo, conhecimento empírico notável, olho vivo e sorridente para tudo e todos. O Mercado 31 de Janeiro, no Saldanha, foi o seu palco mais recente e pode bem ser rebaptizado com o seu nome. Não que Açucena Veloso precise, longe disso. É a nós que nos faz bem cativar um pouco da alma dos grandes, ajuda-nos a ser maiores. Agora anda solta a pequenina e vibrante açucena pelos mares do cherne de O’Neill, além de Neptuno está agora esta sereia para sempre a perscrutar-nos e a instigar-nos à verdadeira liberdade. Até já Açucena.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Um chef no topo do mundo

É um grande prémio, sim, em tudo comparável aos óscares, o que o chef José Avillez acaba de receber. E é também importante a excelência a que a gastronomia portuguesa atinge, pela sua mão. Mais que razões para estarmos em festa.

José Avillez é o chef que melhor representa Portugal e é responsável pela motivação de uma grande massa de novos talentos que hoje frequentam as escolas de cozinha e povoam os melhores restaurantes. São três as razões principais para a liderança, reconhecida por todos os seus colegas de profissão em Portugal. Em primeiro lugar, o talento, pela capacidade inata que tem de em todas as suas criações mostrar vanguarda, rigor e consistência, tornando-se um dos mais importantes agentes culturais da sua geração. Em segundo lugar, a preparação técnica colossal, olhando livremente e sem receio para um novo desafio. Finalmente, o fervor e entusiasmo com que encara e dignifica a sua profissão, verdadeiro exemplo humano de trabalho em rede, esgotando-se todos os dias com a mesma paixão do primeiro instante. Em menos de duas décadas, graças a José Avillez a gastronomia portuguesa atingiu o mais alto nível de sempre e as distinções surgiram quase naturalmente, para si e todos os outros. Hoje os olhos do mundo estão voltados para a cozinha portuguesa pela sua relação de intimidade e excelência com o mar; pelo fabuloso receituário tradicional e pelo quanto Portugal honra as suas raízes regionais. O prémio que acaba de receber das mãos da Academia Internacional de Gastronomia, “Grand Prix de l’Art de la Cuisine”, é não só uma das mais importantes distinções profissionais que um chef pode receber, mas também a subida da cozinha portuguesa ao mais elevado patamar mundial.
De qualquer forma, o mérito mesmo é de José Avillez, sabe-o bem quem com ele tem privado e que o tem acompanhado ao longo do seu percurso. Maria de Lourdes Modesto, autora de algumas das mais importantes obras de culinária e gastronomia do nosso tempo desde sempre o apoiou incondicionalmente. José Bento dos Santos, o nosso maior gastrónomo, foi seu mentor desde muito cedo, expondo-o sempre aos maiores desafios, que o jovem cozinheiro abraçou com entusiasmo e estudo profundo. Vítor Sobral, um dos nomes mais sonantes da cena gastronómica nacional, reconheceu em Avillez o perfil do grande chef de cozinha de nível internacional e mantém uma amizade e uma proximidade invulgares numa profissão em que a concorrência e competitividade mina tantas vezes o sucesso de projectos importantes. Miguel Castro e Silva, outra figura incontornável da nossa praça, inspirou um grupo de talentos de elevado potencial que o chef Avillez integrou a ponto de utilizar técnicas avançadas de cozinha em vácuo, baixa temperatura e extracção de essências e aromas. Fausto Airoldi, um dos primeiros, senão o primeiro, a identificar e isolar técnicas como o “à brás” na cozinha portuguesa, teve forte influência no crescimento e consolidação da identidade culinária de José Avillez. Um coro de figuras importantes que o chef agora distinguido ao mais alto nível sempre frequentou, e com quem sempre interagiu. O gigante Alain Ducasse (Plaza Athenée, Paris), o genial Joel Robuchon (L’Atelier, Paris), o surpreendente Pierre Gagnaire (Paris), o infalível Heston Blumenthal (Fat Duck, Reino Unido), o quase familiar Joan Roca (Celler de Can Roca, Espanha) e muitos outros grandes mestres da alta cozinha acolhem com um aplauso forte a entrada do primeiro português no grupo dos eternos. Momento histórico para a cozinha portuguesa e para Portugal. A história essa ainda se há-de lavrar, mas seguramente com duas marcações de tempo: “antes de Avillez” e “depois de Avillez”. Parabéns, José Avillez. Obrigado.